239884_4Aos sete anos, tive meu primeiro vislumbre do vasto poder da tradição de que eu estava me tornando parte, e comecei a entender o sentido da prática espiritual. A prática dera a Samten a aceitação da morte, bem como a clara compreensão de que o sofrimento e a dor podem ser parte de um processo natural e profundo de purificação. A prática havia dado a meu mestre um conhecimento completo do que é a morte e uma tecnologia precisa para guiar os indivíduos através dela.

Sogyal Rinpoche

[Rinpoche, Sogyal. O livro tibetano do viver e do morrer. Tradução de Luiz Carlos Lisboa. – São Paulo: Talento: Palas Athena, 1999, p. 20.]

A morte, um dos maiores mistérios da vida, é também um fato que, apesar de inevitável, constitui um dos aspectos da existência humana com os quais é mais difícil lidar. Há pessoas que evitam até mesmo mencionar a palavra, como se pronunciá-la fosse uma espécie de agouro que atraísse essa indesejada visitante que a ninguém poupa. Ao longo dos séculos, a forma como a morte é tratada tem passado por muitas transformações, especialmente nos últimos decênios, culminando com sua quase negação.

As sociedades adotam formas muito diferentes de lidar com a morte. Em algumas, ela é cercada por rituais muito elaborados e de grande sofisticação. No Ocidente cristão, os rituais mortuários têm passado por grandes transformações. Da antiga tradição de velar o morto na sua própria casa pouco resta nos dias atuais. Pouco restou, também, da antiga prática de reunir a família em torno do agonizante, quando eram recitadas orações com vistas ao conforto da alma que se preparava para sua jornada para o além.

O comum, nos nossos dias, é que uma grande parte da população morra em hospitais, às vezes em leitos de UTIs, sem assistência e a companhia de seus entes queridos. Quanto aos rituais mortuários, há hoje uma verdadeira indústria das funerárias que obrigam os familiares a dispenderem grandes somas, poupando-lhes, porém, o trabalho de ter que arcar com os detalhes desagradáveis do velório e enterro. Com isso, nega-se, de certa forma, a morte. O período de luto, então, passou também por grandes transformações. Isso levou a que a elaboração da perda, sempre necessária, fosse também, até certo ponto, escamoteada. A morte chega quase a ser negada.

Em algumas culturas orientais, porém, a relação com a morte se dá de forma bem diferente. É o caso, por exemplo, do Tibet, país que tem uma longa e bem fundada tradição que o faz sobressair entre as sociedades detentoras dos mais elaborados rituais mortuários. Essa tradição é minuciosamente descrita no “Livro tibetano dos mortos”. Esta obra atravessou os séculos e constitui, ainda hoje, objeto de interesse para muitos pesquisadores ocidentais, entre os quais mencionaríamos o psiquiatra suíço C. G. Jung, que lhe dedicou um ensaio.

Inspirado no “Livro tibetano dos mortos”, o mestre tibetano Sogyal Rinpoche escreveu um livro valioso sobre o tema, intitulado “O livro tibetano do viver e do morrer”. É uma obra de leitura altamente recomendável por todas as questões que o autor analisa a propósito da morte e do morrer. Numa sociedade como a nossa, em que a morte ainda é cercada de muito tabu, vale a pena conhecer outras perspectivas de lidar com a questão. Sogyal Rinpoche oferece ao longo da obra sugestões valiosas a propósito de como lidar com a morte de entes próximos e queridos. Mas o melhor está nas reflexões acerca de nossa própria morte e de como lidamos com ela. A grande dificuldade em lidar com o assunto ancora-se no fato de que a morte nos faz confrontar com nossa finitude, e numa sociedade em que tudo conspira no sentido de negar a morte, essa não é uma tarefa fácil. Isso aumenta ainda mais os méritos do livro de Rinpoche.

Para concluir, cito a sugestão oferecida pelo autor como forma de

Sogyal Rinpoche

Sogyal Rinpoche

aprendermos a lidar com a nossa morte iminente: “Olhar honestamente para os seus medos também vai ajudar você na sua própria jornada para a maturidade. Às vezes penso que não há maneira mais efetiva de acelerarmos nosso crescimento como seres humanos do que trabalhar com os que vão morrer. Cuidar deles já é uma profunda contemplação e reflexão sobre a nossa própria morte. É um modo de enfrentá-la e trabalhar com ela. Quando você lida com os desenganados, pode chegar a uma decisão, a um claro entendimento do que é a mais importante questão da vida. Aprender a ajudar de fato os que estão morrendo é começar a tornar-se corajoso e responsável no que diz respeito à própria morte, e a descobrir em si o ponto de partida de uma compaixão infinita, cuja existência você pode nunca ter suspeitado antes”(p. 233).

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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