Trata primeiro de examinar a ti mesmo;/ Não faças da leitura dos Sutras expediente para eliminar paixões./ Se conseguires firmar tua individualidade,/ Terás chegado à Verdade que não é interior nem exterior.

Han-Shan, poeta chinês do séc. VIII, praticante do Zen

[Gonçalves, Ricardo M. (seleção, tradução, introdução e notas). Textos budistas e zen-budistas. 2ª. ed. revista e ampliada. São Paulo: Cultrix, 1976,  p. 167].

Todas as religiões têm suas peculiaridades, o que as torna diferentes das demais. No caso do budismo, no entanto, há um aspecto que considero de particular interesse e merecedor de destaque. Refiro-me à ênfase que essa religião atribui ao esforço pessoal. Não se pode negar que as demais religiões, de um modo geral, também fazem um apelo ao esforço pessoal. No caso do budismo, porém, muito mais que rezar para entidades sobrenaturais em busca de ajuda, cabe ao praticante envidar todos os esforços no sentido de atingir a meta.

Essa peculiaridade do budismo remonta ao seu fundador, Sidarta Gautama, nascido por volta de meados do século VI a.C. em Kapilavastu, território atualmente pertencente ao Nepal. Oriundo de uma família nobre, caso tivesse permanecido restrito aos muros do palácio onde fora criado, conforme a vontade do pai, seu destino teria sido administrar o reino quando o pai falecesse.

Não foi, porém, o que aconteceu. Aos 29 anos, o pretenso príncipe deixa a vida mundana para se dedicar à busca da verdade e do sentido da vida. Torna-se discípulo dos ascetas Alara Kalama e Uddaka Ramaputta, sendo por eles iniciado na senda da ioga. Como não obtivesse, porém, o que buscava seu coração, abandonou os mestres e, em local isolado, dedicou-se à prática da ascese extrema. Um dia, porém, teve o ansiado insight, a iluminação, despertando para a consciência de que a ascese não era o caminho para a verdade. Estavam lançadas as bases do budismo, posteriormente denominado também de Caminho do Meio.

Na perspectiva budista, a realização só é possível mediante o escrutínio profundo de si mesmo. A mente, por isso, desempenha um papel central na teorização budista. Aliás, esse é um dos conceitos mais explorados pelo budismo, sendo possível atribuir-lhe diversas acepções, na maioria das vezes complementares. Por esse motivo, com o decorrer dos séculos o budismo foi estruturando uma psicologia sofisticadíssima, que não fica nada a dever a qualquer sistema psicológico ocidental. Paralelo a isso, foram sendo desenvolvidas também técnicas de acesso às dimensões mais profundas do ser.

Um aspecto aqui merece relevância: a transcendência só é possível, no budismo, mediante um mergulho profundo na própria interioridade. Uso aqui a palavra transcendência com alguma restrição. Na verdade, esse é um vocábulo de uso pouco comum pelos mestres budistas. A palavra mais utilizada é iluminação. É este, a propósito, o sentido da palavra Buda, que quer dizer Desperto. Buda, de fato, é um atributo, do mesmo modo que Cristo. Quando Sidarta Gautama teve o insight que lhe revelou a verdadeira natureza de todas as coisas, ele deixou de ser Sidarta e passou a se chamar Buda, o Desperto ou o Iluminado. É esse estado, conforme apregoam as escrituras e mestres budistas, que todos devemos nos esforçar para atingir. As técnicas para a consecução de tal objetivo, porém, são diversas. À medida que o budismo se expandiu, disseminando-se por diversos países asiáticos, as técnicas foram também se diversificando, às vezes incorporando a si características próprias das religiões nativas dos países onde se instalaram, como ocorreu no Tibete, em que o budismo vajrayana, por um processo de assimilação, incorporou práticas xamânicas oriundas da religião original tibetana.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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