padreciceroMais de 1800 anos após ter sido pregado numa cruz pelos soldados romanos no monte Gólgota, em Jerusalém, Jesus Cristo, o homem em cuja memória se fundou a Igreja que congrega mais de dois bilhões de fiéis espalhados por todo o mundo, voltou à Terra. Nasceu de novo, na cidade do Crato, interior do Ceará. Cristo retornou na forma de um bebê sertanejo, com traços nitidamente caboclos, mas de cachinhos dourados e olhos azuis. O Menino Jesus redivivo chegou dos céus em meio a uma explosão de luz, com a força de mil sóis, no meio do sertão. Foi trazido por um anjo de asas cintilantes, que na mesma hora levou embora a filhinha recém-nascida de uma católica fervorosa, a cearense Joaquina Vicência Romana, mais conhecida como dona Quinô. De tão intenso, o clarão deixou a mulher temporariamente cega, bem na hora do parto, o que a impediu de perceber a troca das duas crianças. Como sinal de que era um iluminado, o menino santo acabava de regressar ao mundo em um 24 de março, véspera da data em que se celebra a Anunciação de Nossa Senhora, exatos nove meses antes do Natal. Para muitos dos milhões de peregrinos que chegam hoje a Juazeiro do Norte, essa é a verdadeira história do nascimento do padre Cícero. Ele seria a reencarnação do próprio Cristo.

Lira Neto

[Neto, Lira. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,  p. 23].

Quando soube que o Lira Neto estava escrevendo a biografia do padre Cícero, fiquei torcendo para que o projeto fosse logo concluído e o livro chegasse às livrarias. Adquiri o livro no dia 23 de dezembro e, no dia 25, iniciava a leitura. Foi começar e não conseguir mais largar. Nos dias seguintes, às cinco horas da manhã já me encontrava de pé, fazendo café para, logo a seguir, retomar a leitura, que eu concluiria no dia 30 pela manhã.

Tudo concorre para fazer do livro uma obra que prende o leitor do começo ao fim. Não bastasse o fascínio que exerce a figura do biografado, Lira Neto com muita perspicácia e propriedade se aproveita de alguns fatos da vida do padre Cícero para imprimir à narrativa uma sequência que, em alguns momentos, ganha quase ares de romance policial, se é que me permitem o exagero. Um destes fatos, que, aliás, perpassa a narrativa ao longo de vários capítulos, é o do sumiço dos lencinhos manchados de sangue devido aos supostos milagres protagonizados pela beata Maria de Araújo. Depois de relatar o fato, os tais lencinhos aparentemente são esquecidos. Quando menos se espera, lá estão eles mais uma vez roubando a cena.

Aliás, a propósito de Maria de Araújo o autor faz uma afirmação que me pegou de surpresa. Diz ele: “Aquela mulher, com sua linguagem simples e de poucos recursos retóricos, recitou uma ladainha infinda, um vasto repertório de relatos pessoais a respeito de visões, aparições divinas, revelações e profecias que teriam sido recebidas por ela diretamente do Além. Eram tantas e tão indescritíveis as graças alegadas pela beata que, caso fossem creditadas como legítimas pelo clero, por certeza viriam a igualar Maria de Araújo a outras místicas famosas do catolicismo, como Ana Catarina Emmerich ou Teresa de Ávila, consideradas luminares da cristandade” (p. 113).

Fiquei realmente surpreso com a insinuação de Lira Neto a propósito de um possível paralelo entre as duas grandes místicas católicas e a beata. Ponderando sobre a questão, e repassando alguns episódios da vida de santa Teresa de Ávila narrados por ela em alguns de seus livros, me ocorreu que o assunto se prestaria muito bem a um trabalho mais aprofundado. Isso me fez lembrar alguns episódios da vida de Santa Teresa, como aquele em que ela vê um crucifixo cravejado de diamantes. Sua luta para convencer os confessores da realidade da visão constitui uma das passagens mais pungentes da vida da santa.   

Para concluir, devo dizer que Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão é um livro encantador, que prende o leitor da primeira à última palavra. Nele é narrada a história de vida de uma figura tão contraditória quanto extraordinária: o Padim Ciço do Juazeiro.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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