Pois no sábado ele voltou a rondar por aqui. Chegou e foi logo dizendo, assim de chofre, sem nem ao menos anunciar sua presença: “Nietzsche estava certo”. Virei-me e, surpreso por vê-lo mais uma vez em minha biblioteca, indaguei: “Como é?” Ele respondeu: “É isso mesmo, Nietzsche estava certo, Deus está morto”.

Pois lá estava ele novamente, Artaban, o próprio. Rapaz, hoje é sábado, dia de coisas leves. Porque deves saber que o sábado foi feito para coisas leves, tomar um café sem pressa, folhear alguns livros mais ou menos aleatoriamente, depois sair por aí, flanando por livrarias, sebos e lojas de disco, encontrar amigos, conversar amenidades jogando conversa fora, coisas assim sem maiores compromissos com, digamos, o lado pesado da vida. E aí me aparece Artaban pra baldear o coreto. E falar de Nietzsche, logo dele, o filósofo das marteladas. Anunciando que Deus está morto.

Artaban é um inconformado. Aliás, não é bem essa a palavra que lhe cabe. Ele é um sujeito difícil de qualificar. Algo assim como… como o que?… como um sujeito que não cabe na vida, que não cabe no mundo, enfim, que não cabe em si mesmo. Há uma dissonância entre ele e si mesmo, o que, por sua vez, o leva a ser sempre dissonante em relação a tudo. Ele não percebeu ainda que a sua essência é o paradoxo, que ele, aliás, equivocadamente, considera contradição. É por confundir paradoxo com contradição que vive nessa disparidade, arrastando por aí afora o fardo de sentir-se o que não é e nunca se sentir o que, de fato, é.

Ele não percebeu ainda que uma ficção não pode morrer. O problema é que ele é um daqueles tipos que sempre se mete onde não é chamado. Um tipo intrometido. Ele quer estar entre os escolhidos. Não sabe que, no máximo, seria um dos chamados, mas, nunca, um dos escolhidos. Pobre diabo, esse Artaban. Ele não sabe que o grande êxtase seria se adequar totalmente à normalidade dos dias, com tudo que isso possa implicar. Mas ele anseia pelos extremos. Artaban é um danado. E essa categoria, digo, a dos danados, é uma categoria muito perigosa, por ser composta por tipos demasiado renitentes. Mas ninguém corre perigo perto deles. Os danados só são perigosos para si mesmos, o único mal que podem causar é a si mesmos. Mas, de saída, devo advertir que a desgraça está feita, pois o grande mal foi terem nascido, o que os precipitou pelo resto dos dias nessa corda bamba que é a vida.

Porque os danados são assim, vivem se equilibrando numa corda bamba.

Firedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900)

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900)

Nada lhes é suficiente, pelo puro e simples fato de que eles não sabem o que querem. Na verdade, não sabem o que são, digo, não sabem quem são. Os danados não têm um centro. Descentrados, pois, vivem errantes pela vida provocando danações. Aí vem Artaban, um dos danados, querer se ombrear com gente da estirpe de Wilhelm Nietzsche. Não sabe que Nietzsche não é companhia desejável para fracotes como ele. Nietzsche foi um dos danados. Os danados não têm medo de se lascar. E Nietzsche se lascou.

Artaban morre de medo. Aí se encolhe todo. Depois de tantos anos de convívio com Artaban, só recentemente percebi uma coisa: o grande medo que ele sente é de si mesmo. E por isso vive adiando. Ah!, sim, Artaban adia demais. Ele não é. Incapaz de ser, está sempre em outro lugar, e está sempre em outro que não em si mesmo. Artaban me deixa confuso. Na verdade, para ser bem sincero, devo dizer que na maioria das vezes ele quase me faz enlouquecer. Vixe! O que foi que eu disse? Palavra é pesada demais, essa: enlouquecer. Mas é verdade. É por isso que às vezes evito sua companhia. Mas ele é um destes tipos renitentes que não pedem licença. Ele chega e se instala como quem veio para ficar. Quando isso acontece, só me resta aquiescer e ouvir o que ele tem a dizer. E eu que cuide para não me danar que nem ele.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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