Mas pouco importa. O que conta é o momento da pequena frase. E se a gente fosse… É bom, a vida no condicional, como antigamente nas brincadeiras de criança: “Faz de conta que você é…” Uma vida inventada, que contraria as certezas. Uma vida quase: esse frescor, ao alcance da mão. Uma fantasia modesta, dedicada à degustação transposta dos ritos domésticos. Uma brisa de folia bem-comportada que muda tudo sem nada mudar.

Philippe Delerm

[Delerm, Philippe. E se a gente fosse comer lá fora. Em: O primeiro gole da cerveja e outros minúsculos prazeres. Tradução de Leny Werneck. – Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 26. – (Prazeres & sabores)]

Há alguns anos eu me encontrava no aeroporto de Aracaju aguardando o voo que me traria de volta a Fortaleza, quando resolvi experimentar um dos prazeres que já se tornou para mim habitual nestas ocasiões:  entrar na livraria La Selva – sempre encontradas em aeroportos – e dar uma olhada nos livros. Vez por outra trago para casa alguma nova aquisição. Pois bem, foi no exíguo espaço da La Selva, no saguão de embarque do aeroporto, que  descobri numa prateleira um livro cujo título de imediato me atraiu: O primeiro gole da cerveja.  Quando o tomei em minhas mãos percebi que o título continuava, escrito em tipos menores: e outros minúsculos prazeres.

Virei a capa e dei uma lida no que estava escrito na orelha: “Beber uma cerveja, comprar doces, andar com alpargatas na chuva, tomar um gostoso banho de banheira, sorver um vinho do porto, ouvir os ruídos de uma bicicleta… O que há de excepcional nisso? Nada”. O texto continuava: “As pequenas crônicas de Philippe Delerm, no entanto, revelam que por trás de cada ato aparentemente banal, se esconde um mundo de possibilidades prazerosas, que é vital aproveitar em sua plenitude”.  

Dei uma olhada nos títulos das crônicas e fui direito à que dava título ao livro. Uma delícia! Uma maravilha! Com que prazer li aquela crônica, à qual retornaria por diversas vezes – o que ainda hoje faço,  passados já quase dez anos desde que adquiri o livro. Para quem tem na degustação de um copo de cerveja um dos raros prazeres da vida, não poderia ter encontrado mesmo nada mais atraente do que a bela descrição do primeiro gole sorvido pelos afeiçoados desse líquido maravilhosos a que Delerm atribui a alcunha de “ouro espumante”.

Na frase que abre o primeiro parágrafo da crônica o autor resume, em poucas palavras, o objeto de seu texto, quando escreve: “É o único que conta”. E prossegue: “Os outros, cada vez mais longos, cada vez mais anódinos, dão apenas frouxo amolecimento, sensação de abundância esbanjada. O último, talvez, encerra a desilusão do fim de um falso poder”.

Feita esta breve introdução, passa a falar do deleitoso prazer proporcionado pelo primeiro gole: “Mas o primeiro gole! Gole? A coisa começa muito acima da garganta. Esse ouro espumante vem pelos lábios, frescura  ampliada pela espuma que passa depois, lentamente, pelo céu da boca, uma felicidade filtrada de amargor. Como parece longo, esse primeiro gole! Ele é bebido às pressas, com uma avidez falsamente instintiva. Na verdade, tudo está escrito: a quantidade, esse nem de mais nem de menos que faz a sedução ideal; o bem-estar imediato, acentuado por um suspiro, um estalar de língua ou um silêncio equivalente; a sensação enganosa de um prazer que se abre até o infinito…”

No final, conclui: “Mas diante da pequena mesa branca salpicada de sol, o alquimista decepcionado salva apenas as aparências e bebe mais e mais cerveja com menos e menos alegria. É uma felicidade amarga: bebemos para esquecer o primeiro gole” (p. 29-30).

Philippe Delerm, nascido em 1950, é um dos autores mais lidos na França, tendo publicado romances, novelas, ensaios, crônicas e  obras infanto-juvenis. O livro aqui comentado granjeou-lhe o prêmio Grandgousier. Já tive oportunidade de mencionar nesse blog uma categoria que criei para classificar determinados livros da minha biblioteca, categoria essa a que atribuí o nome de livros-talismã. Pois bem, O primeiro gole da cerveja e outros minúsculos prazeres é um dos que ocupa hoje um lugar entre os livros dessa prateleira especial.

É sempre motivo de grande prazer ler as pequenas e deliciosas crônicas de Delerm.  Além da que foi aqui comentada, eu poderia citar diversas outras de que gosto muito, mas vou concluir mencionando uma, da qual citei um trecho em epígrafe a este texto. Trata-se da crônica “E se a gente fosse comer lá fora”, na qual o autor escreve uma frase que se tornou uma das minhas prediletas desse livro: “Uma vida inventada, que contraria as certezas” (p.26).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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