Não há um Deus. Não, não há um Deus que venha nos socorrer e sarar nossas feridas nos momentos periclitantes da vida. O homem, em sua indigência, ao longo de milhares de anos tem criado deuses e mais deuses de acordo com suas necessidades e demandas. Tais deuses, admitamos, servem muito mais como consolo do que como intercessores eficazes na operação de milagres ou solução de demandas. As respostas eficazes às súplicas dos devotos e fiéis, é preciso dizer, são em número reduzido, talvez muito mais frutos do acaso e de algumas convergências de fatores fortuitos, do que qualquer outra coisa.

Há pelo menos um momento na vida em que o homem experimenta o sentido existencial de ser absolutamente só no mundo. Este momento é proporcionado pela experiência da dor. Quando a grande dor advém, ele é forçado a admitir que não há nada mais solitário do que isso, a dor – essa, somente o próprio indivíduo pode experimentar, ela é intransferível. Mas pior do que a inevitável certeza de que ela é intransferível, não podendo mesmo ser partilhada com mais ninguém, é ter que admitir que não adianta clamar por ajuda seja de que natureza for. É o momento da grande, da incomensurável solidão do ser, ocasião em que ele se experimenta sozinho diante do grande silêncio do Universo, ou do grande silêncio de Deus, se assim preferirem.

Em assim sendo, o que nos resta? Resta a certeza de que caminhamos na terra como filhos da Terra. Palmilhamos no nosso cotidiano uma estrada concreta demais e as lições e evidências são tão claras que,  chegados a uma certa etapa do caminho, se torna difícil, quase impossível, seguir alimentado certas ilusões sem que tenhamos que admitir que estamos enganando a nós mesmos. Há um momento em que o indivíduo é convidado, ou melhor, é chamado a um confronto consigo mesmo. É, então, que todas as máscaras devem cair. Devemos tirá-las uma a uma, de forma que, no final, ao fitarmos o espelho diante do qual nos postamos, não tenhamos nada mais que nossa própria face, a qual, olhos nos olhos, deverá ser fitada com a mais firme coragem e frieza.

Ao redigir este texto, ainda ensaio os primeiros passos e, por isso, ainda me deixo conduzir às apalpadelas, escolhendo as palavras para dizer o necessário e, neste momento, imprescindível à minha honestidade comigo mesmo. Porque tudo isso é muito novo e, por que não admitir, até certo ponto assustador. Não se abre mão levianamente do que por décadas sustentou nossas verdades. É como sentir-se, de repente, de mãos vazias, quando se trazia, pouco antes, uma braçada de verdades que nos sustinham.

Verdades convenientes, é bom que se diga, mas, ainda assim, verdades, uma vez que até então se vivera delas, nelas e por elas. Vislumbra-se, então, um horizonte vasto e inexplorado, que é preciso descobrir pouco a pouco. Descobrir, ou mesmo inventar uma nova linguagem é o primeiro desafio quanto se experimenta na vida algo que pode ser qualificado como sendo da ordem de um corte epistemológico.

Não posso precisar ainda até que ponto ou quão longe pode ir uma pessoa na superação de antigas verdades e sua consequente substituição por outras. Esse é um processo eminentemente existencial, portanto, experiencial, donde se conclui que é um caminho que se vai fazendo ao caminhar. Também não me é possível delimitar as fronteiras entre o antigo e o novo, não podendo dizer ao certo o que é verdadeiramente um corte ou o que é apenas continuidade, com a assunção de uma mesma verdade disfarçada com novas roupagens.  

É aí que mora o perigo quando se fala de corte epistemológico. Em se tratando de verdades que tem um valor mais subjetivo que objetivo, fica difícil dizer em que medida  pode ser operado, de fato, um corte.  Num corte epistemológico o que está em jogo é uma mudança absoluta de paradigmas, e isso não é nada fácil, muito pelo contrário. Quem duvidar que ouse tentar e não tardará a concordar com o que afirmo.

Por fim, é preciso advertir que essa é uma experiência que não pode ser decidida racionalmente, ocorrendo, antes, em função de um fato marcante e avassalador, que não deixa outra alternativa que não a de mudar o percurso que vínhamos seguindo, mesmo que tal mudança implique em assumir como pressuposto e meta exatamente o contrário do que se vinha, até então, buscando.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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