Hierofante. Tarô de Oswald Wirth

Receio que nada se pode fazer com essas pessoas. A Igreja está aí e é válida para os que estão nela. Os que estão fora das paredes da Igreja não podem ser trazidos de volta por meios comuns. Mas gostaria que o clero entendesse a linguagem da alma e que o clérigo fosse um diretor de consciência. Por que seria eu um diretor de consciência? Eu sou médico e não tenho preparo para isso. Trata-se de uma vocação natural do clérigo; ele deveria fazê-lo. Por isso gostaria que surgisse uma nova geração de pessoas do clero que fizessem o mesmo que se faz na Igreja Católica: tentar traduzir a linguagem do inconsciente, inclusive a linguagem dos sonhos, para uma linguagem inteligível. Sei, por exemplo, que existe agora na Alemanha o Círculo de Berneuchen, um movimento litúrgico cujo representante principal é um homem com grande conhecimento dos símbolos. Ele me deu uma série de casos que pude comprovar, em que traduziu, com grande êxito, para a linguagem dogmática a linguagem dos sonhos, e estas pessoas voltaram calmamente para o ordenamento da Igreja. Alguns de nossos neuróticos não têm nenhuma desculpa e nenhum direito de ser neuróticos. Eles pertencem a uma Igreja, e se a gente conseguir que eles voltem à Igreja, nós os teremos ajudado. Muitos de nossos pacientes se tornaram católicos, outros voltaram à sua Igreja original. Mas isto deve ser algo que tenha substância e forma. Não é verdade que toda pessoa que analisamos dê forçosamente um pulo no futuro. Talvez ela seja determinada por uma Igreja e, se pude voltar à Igreja, talvez isto seja o melhor que lhe possa acontecer.

C. G. Jung

[Jung, C. G. III. A vida simbólica, p. 284. Em: Jung, C. G.  A vida simbólica: escritos diversos. Tradução de Araceli Elman, Edgar Orth; revisão literária de Lúcia Mathilde Endlich Orth; revisão técnica de Jette Bonaventura. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. – (Obras completas de C. G. Jung; v. 18/1)]

No dia 5 de abril de 1939, Jung proferiu uma conferência no seminário do Guild of Pastoral Psychology, em Londres, sobre o tema “A vida simbólica”. Após a conferência, Jung respondeu a perguntas da plateia. O Bispo de Southwark propôs a seguinte questão: “O que fazer com a grande maioria das pessoas com que temos de lidar que não pertencem a nenhuma Igreja? Elas dizem que são da Igreja anglicana, mas não pertencem a ela em nada” (p. 284).

Em sua resposta, reproduzida acima em epígrafe a este texto, Jung salienta o retorno à religião como um facilitador no tratamento da neurose. Isso porque a religião tem todas as condições para traduzir para sua linguagem, por intermédio dos símbolos, conteúdos inconscientes manifestados especialmente através dos sonhos.

Ora, a essência desses conteúdos, está sobejamente comprovado, aponta de forma inequívoca para a dimensão transcendente da psique. Daí porque são as religiões, através de seus mitos e dogmas, quem melhor os expressam. Nesse sentido, pode-se afirmar que as religiões são mediações culturais que oferecem ao indivíduo os meios necessários de acesso ao sagrado. Nessa perspectiva, elas cumprem uma função psicológica muito importante, uma vez que permitem a expressão simbólica de conteúdos inconscientes que clamam por expressão, o que, de outra forma, se tornaria mais difícil.

Isso não quer dizer que as religiões sejam o único caminho de acesso a tais conteúdos. O que Jung sugere – e, nesse aspecto, estou absolutamente de acordo com o seu ponto de vista -, é que elas são o meio mais eficaz e, talvez, mais viável, o que não significa que não haja outras alternativas.

O ponto a destacar é o seguinte. As religiões, especialmente as grandes religiões, têm uma tradição de séculos, o que as levou a acumular um cabedal de mitos, dogmas e ritos que constituem um autêntico e valioso patrimônio simbólico. Os símbolos religiosos não nascem do nada, não podem ser considerados mera invenção de mentes ociosas que não têm o que fazer a não ser criar mitos vazios de sentido. Os símbolos religiosos têm sua raiz no inconsciente coletivo, esse grande manancial onde está armazenado todo o repertório mítico e religioso da humanidade.

É por isso que eles cumprem uma função psicológica tão importante, pois quando se consolidam através de um rito, por exemplo, numa determinada religião, o fazem para responder a um anseio que vinha medrando já no inconsciente de um determinado agrupamento humano. Os ritos, aliás, são a expressão concreta da realidade simbólica; são, como afirmam alguns estudiosos do assunto, o mito dramatizado.

Do que se afirmou, decorre a proposta de Jung de que os clérigos deveriam ser diretores de consciência. O que Jung quer dizer é que essas pessoas deveriam desempenhar, nas religiões, o papel de psicopompo, ou seja, alguém que conduz as almas na travessia pela difícil e delicada trilha de acesso ao sagrado.

No tarô, esse personagem está muito bem expresso pela figura do Hierofante, em alguns tarôs também denominado Sumo Pontífice. A palavra Pomtífice deriva do latim, pontifex, o que constrói pontes, ou seja, o que ajuda as pessoas a fazer a mediação, a travessia, entre o sagrado e o profano.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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