Fim de tarde em Massapê. Sentados na calçada desfrutávamos da brisa que soprava, ainda meio quente, enquanto, sob o contorno da serra da Meruoca, observávamos os últimos raios do sol a projetarem sombras bruxuleantes por entre as colinas. Um convite à conversa. E era exatamente o que fazíamos. Conversávamos.

O hábito tão salutar e enriquecedor das conversas na calçada, já muito raros para quem mora numa cidade como Fortaleza, no interior ainda se mantém vivo. Fala-se de tudo nesse momento ao qual se pode creditar, inclusive, o valor de fator agregador das famílias. Porque ali emergem memórias de há muito olvidadas, trazendo à tona fatos até então desconhecidos, especialmente pelas gerações mais novas.

Fala-se bastante, também, das memórias da cidade. Muitas memórias, em que. cabem fatos, pessoas, lugares, uma infinidade de motivos para muitos assuntos. Pois foi na aludida conversa à calçada – um autêntico encontro de gerações, do qual participavam este que vos escreve, seus pais, quase octogenários, irmãs, cunhados e sobrinhos – que veio à baila uma provocação.

Falávamos dos tipos pitorescos da cidade, alguns totalmente desconhecidos para os mais jovens, mas nunca apagados da lembrança dos mais velhos. Porque toda cidade que se preze deve necessariamente ter, pelo menos, um tipo bem peculiar, com hábitos e características muito especiais, que o particularizam e o fazem sobressair dentre a massa de habitantes. Esses tipos, com o tempo, conseguem impregnar de tal forma o lugar onde fazem suas peripécias, que acabam por ser incorporados à memória coletiva. Tornam-se, eles próprios, um símbolo.

Pois bem, enquanto conversávamos sobre alguns desses tipos, um sobrinho de pouco mais de vinte anos, que desconhecia totalmente as figuras mencionadas, comentou, surpreso, que não imaginava que Massapê tivesse figuras tão interessantes. A essa observação, veio a provocação: “Cabe a você, tio, registrar essas memórias, escrever essas histórias para que elas não se percam”. Pego de surpresa, não esbocei nenhuma atitude, evitando dizer um sim ou um não ao desafio.

Dois dias depois, lá estava eu escarafunchando uma de minhas estantes em busca de alguns livros do escritor Milton Dias, uma figura admirável e sensível que, ao longo de muitos anos, dedicou-se ao mister de registrar, nas belas e inspiradas crônicas publicadas no O Povo, muitas de suas memórias de menino egresso do interior.

Reler Milton Dias, motivado pela provocação feita por meu sobrinho, me fez pensar o quanto os que têm algum talento no manejo da pena são responsáveis pela memória de suas cidades, memória essa constituída por fatos e pessoas que, uma vez inscritos no imaginário coletivo, precisam ser eternizadas pela escrita, pois os mais velhos desaparecem, mas a palavra escrita permanece.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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