Tu, pelo contrário, me asseguravas que, nas coisas de Deus, não há que considerar a possibilidade, mas a vontade, e que não pode faltar a palavra a quem tem fé na Palavra.

São Jerônimo

[Carta escrita no ano de 374, em Antioquia, endereçada a Inocêncio, presbítero]

Era um homem que acreditava, e, para um homem que acredita, não existem impossíveis. Aprendera isso havia muito tempo, desde que lera uma história que lhe ficaria para sempre impressa na memória como marca indelével. Estava lá, registrada no Livro, uma história esquisita que falava de um certo anjo que apareceu, assim como que vindo do nada, materializado para transmitir uma mensagem. Talvez, antes mesmo da mensagem, a materialização do anjo, ela própria, já fosse um impossível se realizando.

Mais adiante, no mesmo Livro, aquele homem lera um trecho que tomaria como conclusão da estranha história, em que alguém falava para a mulher a quem se dirigira o anjo: “Bem-aventurada aquela que acreditou que se cumpriria o que lhe foi dito da parte do Senhor!”

“Então é isso!”, concluiu com seus botões, “o segredo é acreditar.” Mas, acreditar em quê? Ou, melhor, em quem? O pior de tudo é que aquele era um homem do tipo a quem se poderia qualificar como desconfiado. Simultaneamente crédulo e incrédulo. Por isso experimentava contradições atrozes que, em frequentes ocasiões, lhe martelavam a cabeça, deixando sua mente em polvorosa. Nessas horas, imaginem, tinha vontade de que houvesse um mecanismo que, acionando-o, lhe tornasse possível ausentar-se de si mesmo. Mas do que se é, em essência, ninguém se livra; a gente leva a si mesmo, consigo, pra onde for.

Aí veio o convite, irresistível, tentador. O desafio lhe fora lançado. Uma informação tornou a proposta ainda mais tentadora: seriam publicados cinquenta e três contos, numa referência às cinquenta e três contas do Rosário, às cinquenta e três Ave-Marias. O dele, informou-lhe o amigo, organizador da coletânea, seria o quinquagésimo terceiro, o último.

Como sempre ocorre nessas ocasiões, sobreveio-lhe a grande tortura: aceitar ou não o convite? Foi aí que se lembrou do livro de São Luís Maria Grignion de Montfort, O Segredo Admirável do Santíssimo Rosário. Leria trechos dele e talvez lhe ocorresse alguma inspiração. Um problema: sabia que a obra se encontrava na sua biblioteca, não junto a outras dispostas lado a lado em uma prateleira, como é de praxe, mas em um amontoado de livros empilhados uns sobre os outros. De qualquer maneira, em que pese a dificuldade da tarefa, a busca valia o esforço.

Ao se curvar diante da enorme pilha de livros, deu uma olhada de cima a baixo, sem conseguir visualizar o que procurava. Num impulso, ergueu de uma vez uns dez livros da pilha, pegando o primeiro que apareceu. E aí veio a grande surpresa. Pegou um que, apesar de adquirido havia algum tempo, não o tinha lido ainda. Além do título bastante atrativo, tinha uma relação explícita com o convite.

Aquele homem, além de crédulo, era também dado a essas pequenas coisinhas do dia a dia que parecem sinais. Ele gostava de sinais. E se algo lhe acontecia que pudesse ser interpretado como um sinal, ele logo se apegava ao fato e tentava encontrar uma interpretação que garantisse um sentido.

Pois ali estava um sinal incontestável. Havia uma mensagem para ele naquela busca do livro. Afinal, por que pegara exatamente aquele, se nem ao menos se lembrara dele naquele momento? Como sempre faz nessas ocasiões, tão logo o pegou, abriu-o aleatoriamente (essa prática, denominada sortes apostolorum, era conhecida desde a Antiguidade, tornando-se popular e muito usada na Idade Média). Abriu-o na página 15 e leu num átimo as primeiras palavras que lhe saltaram aos olhos:

Na Anunciação

Maria contempla a Face de Cristo

Com os olhos do coração.

Ficou um tempo ali parado, folheando o livro e se perguntando: “Por que exatamente este livro? E por que exatamente estas palavras?” Pensou no Rosário. E lembrou um fato curioso. Havia pouco mais de um ano, indo à cidade de Aparecida, adquiriu alguns Rosários para presentear parentes e amigos quando retornasse. Certo dia, pegou um deles para dá-lo de presente a um amigo. Antes de fazer a embalagem, abriu a caixinha para conferir o conteúdo. Para surpresa sua, aquele Rosário era diferente dos demais. Os Rosários, em geral, ao final da sequência dos cinco mistérios, têm uma medalhinha, seguindo-se uma conta maior do Pai-Nosso, três das Ave-Marias, uma outra do Pai-Nosso, terminando com uma cruz.

Pois bem, acontece que aquele Rosário tinha, em vez de uma medalha e uma cruz, duas medalhas de Nossa Senhora Aparecida: uma menor, finalizando os mistérios, e outra maior, diferente da primeira, substituindo a cruz. Na ocasião, resolveu que ficaria com aquela peça, não a presenteando a ninguém. E desde então, sempre indagava a si mesmo qual o sentido daquela singularidade.

“É isso!”, exclamou para si mesmo, juntando a imagem do Rosário com as palavras que fitava, indagativo. Ali estava a chave. Eis o motivo pelo qual aquele estranho Rosário, em vez do crucifixo, trazia uma medalha de Nossa Senhora Aparecida. Na verdade, a cruz estava lá, mas ele nunca atentara para isso. Cristo estava ali, e o homem não se dera conta. É necessário contemplar a Cristo pelo olhar de Maria. Ela nos conduz a Ele. Pelo olhar de Maria, que o contempla com os olhos do coração, nós contemplamos a Cristo. Ao tocar a efígie de Maria, na medalha, cada vez que aquele homem rezava o Rosário, tocava também a cruz de Cristo e dele se aproximava, sem que disso tivesse consciência.

Tomado pelo encanto, decidiu ler o livro na íntegra, e foi então que se viu agraciado com mais um daqueles episódios luminosos com que Deus o brindava de vez em quando, forte o suficiente para provocar-lhe uma mudança de rumo na vida. A certa altura, depara-se com uma estrofe que se inicia por uma palavra destacada em negrito, provavelmente, para que não passasse despercebida ao leitor (embora, para aquele homem, tal palavra jamais tenha passado despercebida, não importa o contexto em que a tenha lido, pois ele a perseguia havia anos como se persegue a coisa mais desejada, capaz de fornecer a chave do enigma de uma vida):

Metanoia

chega o tempo

em que o que mais importa

não importa mais

Deus resplandece no céu e na terra

e em toda a parte

Ler aqueles versos teve o valor de uma revelação. Ali estava explicitado um apelo e um convite diversas vezes reiterados a ele quando rezava o Rosário, cuja aceitação fora sempre postergada. Agora, havia chegado o momento. Era algo assim como se lhe tivesse sendo oferecida uma última chance.

E ali mesmo uma ideia lhe veio à mente. Pegaria o Rosário e tiraria dele a última conta das cinquenta e três Ave-Marias e a colaria à imagem de Nossa Senhora Aparecida, simbolizando uma penitência interior. Assim, cada vez que rezasse o Rosário, lembrar-se-ia de que aquela quinquagésima terceira conta ausente fora, na verdade, doada a Maria como um pequeno e afetuoso presente, o presente mais valioso de que ele dispunha. O teor da penitência, aquele homem, dado a mistérios, a ninguém revelaria, devendo permanecer para sempre como um segredo entre ele, a Virgem Maria e São Jerônimo. Num trabalho delicado e dedicado, fez-se artesão para retirar a conta do Rosário e oferecê-la à Virgem Maria, colando-a à sua imagem.

Ocorreu-lhe, também, agregar à penitência interior algo que ofereceria como um pequeno regalo a Nossa Senhora. Quanto a isso, o certo é que ele, a quem nunca ocorrera a ideia ou possibilidade de escrever um conto, fizera-se contista para louvar à Mãe de Deus e sua maravilhosa e surpreendente intercessão pelos filhos que a amam e reverenciam. De fato, o poeta, autor do livro que proporcionara àquele homem insights de tanta magnitude, tinha consciência da verdade que proferira quando escreveu:

A palavra poética é um reflexo da Palavra restauradora de Deus.

Num último gesto, antes de fechar o livro, circunspecto, leu, no silêncio mais reverente de que até então fora capaz:

CALEI-ME, JÁ NÃO ABRO A BOCA, PORQUE SOIS VÓS QUE OPERAIS. (Sl 38,10)

[Conto de autoria de Vasco Arruda, publicado no livro: Eu conto com Nossa Senhora  ∕ Bruno Paulino e Luciano Dídimo, organizadores. Fortaleza: Instituto Horácio Dídimo, 2021, p. 152-155.]