Os fariseus de todos os tempos desfiguram seu rosto para que ninguém possa ignorar suas devoções. Francisco não só não podia suportar tais fingimentos da falsa piedade, mas colocava a alegria e o júbilo entre os deveres religiosos. Como ser triste quando se tem no coração um tesouro inexaurível de vida e de verdade, que só tende a crescer na medida em que é alcançado? Como ser triste quando, apesar das quedas, não se cessa de crescer? Há para a alma piedosa que cresce e se desenvolve uma alegria semelhante à da criança, tão feliz por sentir seus pobres e pequenos membros fortificarem-se permitindo-lhe, a cada dia, um esforço a mais. Além disso, a palavra alegria é talvez aquela que mais se repete na pena dos autores franciscanos (1Cel 10;22;27;31;42;80; 2Cel 125-128; Ec 5;6; JJ 21). O Mestre fez dela um dos preceitos da Regra (RnB 7; cf. 2Cel 128). Era por demais um bom general para não saber que um exército alegre é sempre um exército vitorioso. Há na história das primeiras missões franciscanas explosões de riso que soam alto e claro (cf. EC 5;6; JJ 21).

Paul Sabatier

[Sabatier, Paul. Vida de São Francisco de Assis. Tradução de Frei Orlando A. Bernardi; apresentação à edição brasileira de Frei Vitório Mazzuco. – Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco: Instituto Franciscano de Antropologia, 2006, p. 237.]

Já tive oportunidade de escrever neste blog sobre São Francisco e a alegria. Pois bem, estou concluindo a leitura da Vida de São Francisco de Assis, de Paul Sabatier. Sabatier é considerado um dos maiores franciscanófilos de todos os tempos (com a devida vênia, como eu gostaria de, um dia, ostentar também este título!). Foi um pesquisador incansável de tudo o que diz respeito ao poverello de Assis, tendo sido responsável, inclusive, pela descoberta de algumas fontes originais que se supunha perdidas.

Tem sido para mim fonte de inesgotável prazer a leitura do livro de Sabatier. Ali aparece um São Francisco em alguns aspectos diferente do que se encontra em outras biografias. Antes de prosseguir, quero fazer um parêntesis.

No dia 1º de novembro fui convidado para participar de uma sessão da Academia Brasileira de Hagiologia. Na ocasião, fui formalmente convidado por sua presidenta, a Dra. Matusahila Santiago, para fazer parte da secção cearense da mesma, a Academia Cearense de Hagiologia, por indicação de um dos componentes dessa última, Roberto Gaspar. Anteriormente, a Desembargadora Gisela Nunes da Costa, membro da Academia Brasileira de Hagiologia, já me havia formulado o mesmo convite, dizendo que indicaria meu nome para a secção cearense. Fiquei muito envaidecido com o convite e, claro, o aceitei de imediato, pois o estudo da vida dos santos é uma de minhas paixões.

Por que fiz esse parêntesis? Bem, eu falava que o São Francisco biografado por Paul Sabatier é, sob alguns aspectos, diferente do São Francisco de outras biografias. É aí que se justifica o meu parêntesis. Percebo que há muitos equívocos na hagiologia, e é por isso que recebo com tanto júbilo o convite para ser membro de uma academia que se dedica exatamente ao estudo da vida e obra dos santos. Os hagiólogos tendem, de maneira geral, a retratar os santos de forma muito beata, o que nem sempre condiz com a verdade.

Os santos, em sua maioria, foram grandes combatentes, pessoas de carne e osso como todos nós. Mas muitos hagiógrafos parecem não pensar assim. Fazem dos santos figuras etéreas, angélicas, chegando-se mesmo, quando se lê determinadas hagiografias, a duvidar que tenham sido entes de carne e osso. Movidos pelo propósito de fazer dos santos modelos de virtude, desvirtuam a vida do seu biografado, tornando-o inumano.

Isso, graças a Deus!, não se pode dizer de Pau Sabatier. Muito pelo contrário. O São Francisco que emana das páginas da hagiografia de Sabatier é um homem humano, profundamente humano. É um santo, sobretudo, que sabia rir, que não precisava desfigurar a face para mostrar sua santidade. Inclusive porque ele não precisava mostrar santidade nenhuma. Ele vivia em comunhão profunda com aquele a quem tomara por Mestre, e isso lhe bastava. Era isso, também, que o fazia transbordar de alegria. São Francisco – isso encontramos nos relatos de seus primeiros biógrafos, aqueles que o conheceram em vida – cantava quando se sentia possuído pela beleza da criação.

Paul Sabatier afirma que uma das normas da primeira regra de São Francisco, a Regra não Bulada, era a alegria. Fiquei fascinado quando li essa informação. Imaginem, uma ordem religiosa que tem como uma de suas normas a alegria. Quando vi essa informação, fechei o livro de Sabatier e fui procurar a Regra não Bulada. E lá estava, com todas as letras:

E cuidem para não se mostrar exteriormente tristes e sombriamente hipócritas; mas mostrem-se alegres no Senhor, sorridentes e convenientemente simpáticos. (Fontes Franciscanas e Clarianas. Apresentação Sergio M. Dal Moro; tradução Celso Márcio Teixeira… [et. al.]. 2ª. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, Regra não Bulada, p. 171).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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