Encontrava-me absorto em meus pensamentos esta manhã quando, de repente, recebo de um amigo que “adora sair no domingo”[i], um convite para um passeio. Estupefato, estranhei o convite, em virtude da gravidade do momento que estamos vivendo, forçados pelas circunstâncias a nos manter em quarentena, restritos, portanto, aos limites de nossa residência. Sem dar muita atenção aos meus argumentos, ele disse que isso não era motivo para preocupação e que eu nem pensasse em contágio, pois, afirmou, “São mágicas as ruas da nossa cidade”.[ii]  E assumindo um tom que me fez rememorar aquelas figuras aladas saídas das páginas das Escrituras Sagradas, como se fora “…um arcanjo desgarrado do Pai eterno”,[iii] finalizou, como se me propusesse um enigma: “Eu acelero e atraso, mas sempre chego no tempo”.[iv]

Nada mais me restou senão me deixar conduzir, a partir de então, no dorso de um centauro alado, em um extasiante passeio pela sonoridade e poesia do Centauros e Canudos Redivivo, ciceroneado pelo inspirado bardo e amigo Pingo de Fortaleza, que me conduziu, qual flautista de Hamelin, à quase mítica terra do Arraial de Canudos em busca da saga do taumaturgo Antônio Conselheiro. Sem que, de imediato, me desse conta da inusitada jornada, logo mais eu vislumbrava, do alto, terras e lugares nunca antes por mim imaginados. Não muito tempo depois de iniciada a aventura, Pingo me apontou um maciço que identificou como sendo Monte Santo. A seguir, passamos por Uauá, até vislumbrarmos as águas serenas do açude Cocorobó. Gradativamente fui sendo apresentado a cada recanto daquele lugar onde se desenrolou uma epopeia quase mítica por volta dos anos 90 do século XIX.   

Foi isso mesmo o que aconteceu. Atendendo ao convite do Pingo, dediquei meu domingo de quarentena a um mergulho poético no quase mítico universo de Canudos. Tal mergulho me foi proporcionado por um trabalho que tem, ele próprio, uma bela história pra contar. Lançado pela primeira vez em 1986, de forma independente, o LP Centauros e Canudos foi relançado, em 2018, com o título Centauros e Canudos Redivivo. Sem arredar o pé de casa, por meio dos textos inseridos no disco pude acompanhar, simultaneamente, duas sagas: a do Antônio Conselheiro, e a do próprio Pingo de Fortaleza, iniciando-se com a narração da sua chegada “… do periférico bairro do José Wálter em Fortaleza às ruas do Benfica, centro das mobilizações culturais estudantis dessa cidade no início da década de 1980”[v], onde teve início sua carreira como artista.

A propósito da gênese do LP, afirma Pingo: “Um dia qualquer desses de fazer musical, meu parceiro Guaracy me presenteou com uma letra intitulada Centauros e Canudos, que musiquei numa daquelas noites em que dormia na sede do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da UFC (Universidade Federal do Ceará); algum tempo depois, numa coincidência incomum, outro amigo e futuro parceiro, Eurico Bivar me entregou uma letra com o título de Centauro Guerreiro – não por acaso a imagem do Centauro vai permanecer presente em minhas referências no decorrer de minha carreira artística”. E conclui: “Nesse mesmo tempo, Rosemberg Cariri me passou um poema que citava vários movimentos, entre estes Canudos e o Caldeirão. E foi assim, de acasos e numa ambiência de inspirações comuns, que sem perceber e elaborar um projeto específico, de uma hora para outra, percebi que tinha um material musical sobre o tema de Canudos e que este seria meu primeiro disco”.[vi]

De fato, não creio que se trate apenas de uma “coincidência incomum” nem, tampouco, “de acasos”. Parece-me que se pode discernir nos três fatos acima relatados uma sequência de sincronicidades. Note-se o quanto o elemento mítico está presente. Inclusive, eu arriscaria sugerir a hipótese de que, talvez a um exame mais acurado, fossem identificadas possíveis imbricações de natureza mítica entre a figura do Centauro e a de Antônio Conselheiro.

À medida que se prossegue na leitura dos textos encartados no LP, se vai, gradativamente, desvendando o rico percurso percorrido pelo Centauros e Canudos em seus 32 anos de existência. Desde o seu lançamento, em 1986, com um show, no Teatro da Emcetur (Empresa Cearense de Turismo), com participações na Missa pelos Mártires de Canudo, em diversas ocasiões; trilha sonora para a peça teatral O Conselheiro e Canudos, estrelada por José Dumont, Ricardo Guilherme e Tamanine; participação na Romaria de Canudos e apresentação no simpósio internacional sobre Canudos, em 1997, promovido pelo Portugiesisch-Brasilianisches Institut, em Colônia, na Alemanha, apenas para citar alguns.

Na manhã de hoje, enquanto escutava Centauros e Canudos, versos de uma determinada canção não puderam me passar despercebidos, por me remeterem imediatamente à angustiante situação que estamos vivendo por conta do coronavírus. Na verdade, fiquei impressionado com a precisão dos versos, por calharem tão bem às atuais circunstâncias: “Entre o medo e a morte em retirada, / Multidões se debatem sem saída”. (…) “Procurando no povo a providência / E a certeza no campo da ciência / Pra cantar o combate conterrâneo. / Sucesso sofrido, sucedâneo / Que se abate em todo campo à capital, / Na comédia do drama universal. / A tragédia do meu contemporâneo.”[vii]

Centauros e Canudos Redivivo é um trabalho de rara beleza, cujas canções causam profundo deleite, tanto pela poesia e profundidade dos versos quanto pela beleza melódica. Os arranjos são primorosos! Apreciei-o faixa a faixa, sempre com grande deleite. O Centauros e Canudos Redivivo também está disponível em CD. Pingo lançou, ainda, um documentário com o mesmo título, em que faz uma leitura da saga de Canudos https://www.youtube.com/watch?v=p8Mwx9HV8wY.

Quem sabe a que levará ainda, tanto a criatividade quanto essa sintonia entre Pingo de Fortaleza e Antônio Conselheiro, com o fito de manter viva a memória do peculiar taumaturgo nordestino? Afinal, conforme diz o verso da canção que dá título ao LP, “O milagreiro não morreu”.[viii] Na verdade, provavelmente pela singularidade de sua vida, se tornou, ele próprio, uma figura mítica: “Conselheiro, em seu poder / Foi fazer guerras civis… / E virou Centauro, arauto guerrreiro, / Um velho e novo herói brasileiro”.[ix]

[i] Crônica “HOJE É UM DOMINGO PRA FICAR EM CASA E DAR UM CASCUDO PRA ACHATAR A CURVA DO COVID-19 NO C EARÁ (versão mais cearense), divulgada no Facebook em 21.03.2020.

[ii] Canção: QUE ESPETÁCULO É ESTE? Pingo/Diogo Fontelene

[iii] Canção: INCELENÇA PARA OS MORTOS. Pingo de Fortaleza e Guaracy Rodrigues

[iv] LP CENTAUROS E CANUDOS. Texto: DA PRÉ-PRODUÇÃO E CONTATO COM ARRANJADORES

[v] LP CENTAUROS E CANUDOS. Texto: A CRONOLOGIA E OS FEITOS DOS CENTAUROS – Da idealização do Centauros e Canudos.

[vi] LP CENTAUROS E CANUDOS. Texto: A CRONOLOGIA E OS FEITOS DOS CENTAUROS – Da idealização do Centauros e Canudos.

[vii] Canção: MARTELO. Pingo de Fortaleza e Oswald Barroso

[viii] Canção: CENTAUROS E CANUDOS REDIVIVO. Pingo de Fortaleza e Augusto Moita.

[ix] Canção: CENTAURO GUERREIRO. Pingo de Fortaleza e Eurico Bivar

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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