Absorto em minhas leituras escutei a voz da Naza que, da sala onde se encontrava, falou: “Vasco, Artaud e Lacan vão se encontrar”. Surpreso e sem entender nada, indaguei: “Como é que é?”, ao que ela respondeu: “O Artaud vai visitar Lacan”.

Sem querer abrir mão da comodidade em que me instalara, permaneci onde estava. Intrigado com a história do encontro, tratei de fazer o cálculo mais simples a fim de avaliar a possibilidade de que ele tivesse acontecido. Vejamos: Artaud nasceu em 1896 e faleceu em 1948; Lacan, por sua vez, nasceu em 1901 e faleceu em 1981. Pelo cálculo, tal visita teria sido viável, facilitada pelo fato de ambos serem franceses.

Uma vez que Naza tem o hábito de ler o jornal na sala e, sempre que vê algo que pode me interessar me dá um toque, resolvi me levantar e ir até lá. Imaginei que talvez ela estivesse lendo um texto que alguém tivesse escrito sobre uma possível visita do psicanalista ao ator que, dentre as muitas atividades que desempenhou, se incluem as de escritor, poeta, diretor de teatro e dramaturgo.

Ergui-me e caminhei em direção à sala para me informar melhor com Naza,  imaginando o que poderia ter resultado de um encontro entre duas figuras tão controvertidas.

Os dois teriam conseguido se entender? O que teriam dito um ao outro? Um,  egresso da psicanálise; o outro, totalmente imerso no universo do teatro, podendo-se apontar como elo entre eles a paixão pela palavra, que ambos, sob perspectivas diferentes, transfiguraram.

Um outro aspecto da existência de ambos talvez fosse o motivador do encontro: a loucura. Artaud, um homem atormentado e tachado de delirante, frequentou manicômios e hospícios, num dos quais terminaria seus dias. Lacan, o psiquiatra que se tornou psicanalista e cujos fundamentos para seu trabalho inicial no campo da clínica foi buscar exatamente nos recônditos de um hospital psiquiátrico. Teria Artaud procurado fazer uma visita a Lacan motivado por algum interesse em buscar um lenitivo para a profunda dor psíquica que o acometera?

Um turbilhão de indagações e hipótese pululavam em minha mente quando cheguei na sala. Pois eis que, neste exato momento, antes que eu tivesse tempo de falar qualquer coisa, o telefone da Naza toca. Ao atender, ela pergunta: “E aí, o Artaud fez a cirurgia?”

Conversa por alguns minutos com o seu interlocutor e, ao desligar, fala: “O Artaud não fez a cirurgia. O Adonai disse que parece que ele pressentiu que iria ser castrado e sumiu de casa ontem, somente retornando esta manhã, mas o Samuel não poderia atendê-lo hoje”, concluindo: “O Artur vai ter que dizer para Lacan que ele vai esperar mais alguns dias pela visita do seu colega felino”.

Caiu a ficha. Então é isso! Temos um sobrinho, o Adonai, estudante de teatro, que deu ao seu gato o nome de Artaud. Outro sobrinho, o Artur, psicólogo, que reside vizinho à clínica veterinária do Samuel, de quem também somos tios, tem um cão chamado Lacan.

Esclarecido o imbróglio, engoli em seco minha decepção. Retornei à biblioteca matutando com meus botões: será que os nós borromeanos de Lacan dariam conta da  complexidade do teatro da crueldade? Haveria pelo menos um ponto em que os dois se reconheceriam ou seria aquele um encontro em que dois seres valendo-se de uma linguagem diferente, como se falassem por miados e latidos, não conseguiriam se comunicar?

Como eu gostaria de ler sobre um possível encontro entre estas duas figuras extraordinárias que legaram obras tão singulares à humanidade!

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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