Quando lançou o disco Recanto, há seis anos, Gal Costa rejuvenesceu seu repertório em algumas décadas. Dirigida por Caetano Veloso, a baiana se cercou de climas eletrônicos, jovens instrumentistas e de canções que cabiam perfeitamente em sua voz imensa. O trabalho que veio em seguida tinha como missão manter aquele patamar de qualidade, ousadia e novidade. Foi com essa expectativa que, em 2015, chegou ao mercado Estratosférica, nada menos que o 36º álbum de Gal Costa.

Direção de Marcus Preto, produção de Kassin e Moreno Veloso, Estratosférica já começa com pancadas de bateria e um riff sujo de guitarra que sugerem ali um disco de pegada roqueira. É por conta dessa sugestão que Gal aparece fazendo os famosos chifrinhos metaleiros na capa de Estratosférica Ao Vivo (Biscoito Fino). Recém lançado em CD e DVD, o show marca os 50 anos de Domingo, disco de estreia da baiana – se bem que a estreia mesmo foi em 1965, num compacto duplo.

“Não quero nada careta, quero um show bem rock’n’roll”, exigiu Gal Costa sobre o show que teve produção musical de Pupillo, baterista da Nação Zumbi. Juntar o pedido da cantora com a presença do músico de uma das bandas mais autênticas do rock nacional e os chifrinhos da capa do novo DVD pode gerar uma falsa expectativa do público. “Bem rock’n’roll” soa exagerado, a menos que você aceite que a frase vem de uma musa tropicalista. Sim, para ela, Mal Secreto (Jards Macalé/ Waly Salomão) e Os Alquimistas Estão Chegando (Jorge Ben) podem ser tão rock’n’roll quanto um cabeludo gritando num palco.

Para afirmar essa crença, Gal Costa saiu pinçando em seus muitos discos elementos que comprovam que ela sempre esteve perto do rock, mesmo sem nunca ter se dado ao trabalho de querer ser uma representante do gênero (e nem de nenhum outro). É assim que ela trouxe de volta a amalucada Arara (Lulu Santos, lançada em 1987), a lisérgica Não Identificado (Caetano Veloso, 1969), a popíssima Namorinho de Portão (Tom Zé, 1969) e a funkeada Cabelo (Arnaldo Antunes/ Jorge Ben Jor, 1990). A essas, foram misturadas canções de Estratosférica, como a explosiva Sem Medo nem esperança (Antonio Cícero/ Arthur Nogueira), a dramática Jabitacá (Junio Barreto/ Lira/ bactéria), a acelerada Casca (Alberto Continentino/ Jonas Sá) e a safada Por baixo (Tom Zé).

Entre as 22 músicas do repertório há ainda espaço para surpresas, como Gal ao violão para relembrar sua história de amizade com Caetano Veloso. Ao concordarem que João Gilberto é o melhor cantor do Brasil, há mais de 50 anos, ele resolveu dar à nova amiga uma composição inédita, Sim, Foi Você. Também de Caetano, Como 2 e 2 ganha mais uma releitura sem nunca perder sua força. Tem ainda uma inédita de Marcelo Camelo, o samba à la Noel Rosa Por Um Fio. Mas a surpresa do repertório, lançada como single, é o blues inspirado de Rita Lee Cartão Postal. Lançada no excepcional Fruto Proibido (1975), esta faixa há muitos anos pede a voz de Gal. Demorou, mas ganhou.

Em mais de uma hora de espetáculo, Estratosférica Ao Vivo tem ótimos momentos, como uma interpretação acústica de Três da Madrugada (Carlos Pinto/ Torquato Neto). Mas também revela os limites da intérprete aos 72 anos. A voz de timbre agudíssimo e limpo adquiriu uma rouquidão e um medo de ir além da zona de segurança. A baiana de rebolado frenético hoje se mexe o mínimo possível no palco. Vários momentos fazem referência ao lendário Gal A Todo Vapor, do figurino mezzo hippie à mescla de canções acústicas e roqueiras. Mas aquela época passou e a Gal, agora, precisa chegar quase ao final do show pra tirar o olho do teleprompter e se soltar mais. Não é à toa que ela deixa Meu Nome É Gal (Roberto Carlos/ Erasmo Carlos) para o fim. É pra deixar claro que o tempo passou, mas ela ainda tem um nome e uma história a zelar.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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