*Artigo escrito pelo jornalista Hamilton Nogueira para o especial de 70 anos do cantor Belchior publicado pelo jornal O POVO em outubro de 2016

Por: Hamilton Nogueira

Era 1976. Eu tinha três anos de idade e o meu fim de tarde continha um ritual. Regularmente eu atravessava a rua Visconde do Rio Branco, banhado, arrumado, penteado e perfumado. Sentava nos degraus da casa defronte ao pequeno apartamento onde nasci, e assistia atentamente ao ensaio de um grupo de adolescentes.

Eram adolescentes normais e muito receptivos, diz minha mãe, àquele fã inusitado cujos anos de vida não cabiam em uma só mão. Os nomes dos adolescentes: Rodger, Belchior, Fagner, Ednardo e Teti, para citar apenas alguns.

A casa da Visconde do Rio Branco ainda está lá. Já foi palco, já foi lembrança, já foi um bar, já foi esperança, porém como diz a música de parte do grupo com mote em Castro Alves, hoje é nada, nada, absolutamente nada. O prédio é belo e esquecido, metáfora e alucinação da forma como é tratada a qualidade do que ali foi produzido.

Mas o que aconteceu conosco? Por que o mercado passou a decidir tão facilmente o que somos, ouvimos e consumimos? Não se trata de saudosismo, pois sabemos que o passado de fato é uma roupa que não nos cabe mais, no entanto preservar essa roupa é estratégico para o turismo, para a formação musical, para a construção da identidade de um povo, para o respeito à qualidade estética e estímulo ao novo que sempre vem. Vem, mas tem que vir melhor! Não podemos abrir mão disso. Não um novo forjado pelo mercado de rápido consumo, mas sim para mais desenvolvimento inteletual e civilizatório – embora eu tenha sangrado demais e chorado pra cachorro, ainda acredito que devamos perseguir esse sonho.

Naquele 1976 foi lançado o icônico Alucinação, chegando agora aos 40 anos juntamente com os 70 anos de vida do Belchior, e não sei se temos o que comemorar, mas sei que precisamos falar a respeito para quando passar o mal que a força sempre traz, possamos receber melhor aqueles que vêm e teimam em existir e criar, apesar dos pesares.

Se um dia os poderes públicos e privados conseguirem enxergar os escombros deixados pela casa abandonada, torçamos para que não deixe ela em paz dormir na solidão, em um mundo de não tem lá fora, não tem lá dentro, três cadeiras de madeira, uma sala, mesa ao centro, e um pau d’arco florindo à porta sob a qual, em nome do dinheiro, enterramos a nossa música morta.

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Mariana Amorim

Jornalista, apaixonada por comunicação e envolvida com música! Acha que uma bela canção pode mudar o mundo. Coleciona livros, discos de vinil, imãs de geladeira e blocos de anotação. Apaixonada pelos garotos de Liverpool e pelo rapaz latino-americano.

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