Foto: Drika Santos/ Divulgação

Mauricio Magalhães de Carvalho nasceu e cresceu cercado de música. Seu instrumento primeiro não poderia ser outro. Filho de mãe pianista, ele herdou o mesmo caminho e misturou as influências de dentro de casa com o que absorveu da rua. Da tradição ao moderno, do volátil ao estabelecido, rock, pop, erudito, choro, samba… Mais reconhecido pelo apelido de Mu, ele tornou-se uma referência da música moderna brasileira desde que integrou o grupo A Cor do Som. Instrumental, pop, atemporal, a banda que nasceu como apoio para a então recente carreira solo de Moraes Moreira, mas logo eles se descolaram do baiano e seguiram o próprio rumo agregando novos parceiros, como Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Do A Cor do Som a um requisitado produtor, músico de estúdio e compositor de trilhas para a TV, Mu Carvalho reúne seu trabalho autoral num Songbook lançado este mês pela editora Gryphus. São 25 composições, entre choros, rocks, valsas e baiões, tudo acompanhado de um QR code que leva o leitor ao SoundCloud. “É um livro para pianistas de todos os níveis, profissionais e amadores. São choros, baiões, valsas, baladas, transcritas para piano, claves de sol e fá, exatamente da forma como eu toco, mão esquerda e mão direita, sem cifras”, descreve Mu em entrevista por email, exclusiva para o Discografia. Leia a íntegra.

DISCOGRAFIA – Queria saber a história desse songbook. Foi uma ideia sua? Quando começou e como foi esse mergulho na própria história como compositor?
Mu Carvalho – Pensava nisso há muito tempo, mas só comecei a mergulhar nesse trabalho há dois anos. A composição sempre foi o mais importante no meu trabalho dentro da música. É claro que o piano, a forma como eu desenvolvi a minha “cara” no som do piano e synths também tem a ver com composição, de certa forma. Como sempre me dediquei à música brasileira no meu trabalho, misturando com tudo que eu sempre ouvi – o piano erudito da minha mãe, o prog rock, o Ernesto Nazareth, os baiões o jazz – dando uma olhada no panorama, tanto da literatura dos songbooks como no mercado fonográfico, achei que havia uma lacuna muito importante que eu poderia colaborar para enriquecer com todo esse material das minhas composições, que venho produzindo desde o começo da minha carreira.

DISCOGRAFIA – Além das partituras, o que mais o livro traz?
Mu Carvalho – É um livro para pianistas de todos os níveis, profissionais e amadores. São choros, baiões, valsas, baladas, transcritas para piano, claves de sol e fá, exatamente da forma como eu toco, mão esquerda e mão direita, sem cifras. Parece simples, mas foi um trabalho que exigiu muita dedicação, ficamos dois anos, eu e o maestro Vittor Santos mergulhados nisso. O Martin Ogolter, designer gráfico do livro, teve a grande ideia de colocar um QR code ao lado de cada título, assim as pessoas podem ter acesso ao áudio, com meu piano no SoundCloud. Isso é um super diferencial, vai ajudar muito as pessoas no ato de estudar uma música.

DISCOGRAFIA – O piano é um instrumento interessante pela versatilidade. Ele nasce como um instrumento de concerto, mas, ao longo da história, existiram grandes pianistas eruditos, roqueiros, sambistas e outros. Como o piano entrou na sua vida e que nomes (artistas) foram mais importantes na tua formação?
Mu Carvalho – O piano entrou na minha vida desde que nasci, ouvindo minha mãe tocando Nazareth, Mozart, Chopin, Zequinha de Abreu… Alguns pianistas foram também muito importantes na minha formação. Luis Eça, com quem tive a honra de conviver e estudar, Egberto Gismonti, que produziu meu primeiro disco solo, Oscar Peterson, Keith Emerson, Rick Wakeman… Keith Jarrett. Esse, quando ouvi pela primeira vez, fiquei tão impressionado que posso dizer que mudou minha forma de pensar em música definitivamente.

 DISCOGRAFIA – O A Cor do Som marcou a história da nossa música por uma mistura de sons brasileiro com o improviso do jazz, tocando do chorinho ao rock, mas sem perder uma pegada mais pop. Como você vê essa mistura de tantos sons e que espaço existe para esse som hoje, na mídia, entre o público, nas casas de show?
Mu Carvalho – Então, esse sempre foi o meu alvo. Desde quando comecei a compor, eu foquei nisso. Não fazia sentido pra mim compor um choro da forma como era o choro há 100 anos. A música Espírito Infantil, um choro meu que tocamos no Festival de Choro da TV Bandeirantes em 1978 era isso. Tinha prog rock, jazz, tinha tudo ali nessa música. Algumas pessoas não entenderam, ficamos com o quinto lugar, mas chamou tanta atenção que o Waldir Azevedo, que estava no juri, veio falar com a gente. Nunca me esqueci daquele momento, ele disse que a nossa participação naquele festival foi a mais importante de todas, porque a gente estava “dando um sangue novo no Choro. Se dependesse dos outros, o choro iria virar peça de museu…”, foram as palavras do Waldir. Sobre a questão de espaço na mídia e nas casas de show, essa nem vou comentar, o Brasil abandonou sua cultura.

DISCOGRAFIA – Há um ano perdíamos João Gilberto. Que influência e importância ele teve na tua obra?
Mu Carvalho – Sempre admirei o João, pelo fato de ser único, ter a sua cara. Pra mim essa é a coisa mais importante em todas as artes, ter um acara, algo original.

DISCOGRAFIA – Também esse ano perdemos Moraes Moreira, figura central na história do A Cor do Som. Como você recebeu essa notícia? Que importância ele teve na tua formação como músico?
Mu Carvalho – Moraes foi muito importante na minha carreira, na história d’A Cor do Som. A Cor nasceu como banda de apoio do Moraes, desde o primeiro disco solo, quando ele saiu dos Novos Baianos. E, além de tudo, foi um dos meus maiores parceiros. Fizemos Semente do Amor, Swingue Menina, e muitas outras, são músicas que, além de sucesso, são clássicos do POP/MPB.

DISCOGRAFIA – Você tem uma história em trilhas de novelas. O que muda em fazer música para um disco e fazer para um projeto audiovisual? Seu processo de compor muda?
Mu Carvalho – Sempre fui apaixonado por cinema, e pela música do cinema. Quando o Caetano nos convidou, no final dos anos 1970, pra trabalhar com ele na música do filme A Dama Do Lotação, de Neville de Almeida, foi um deleite pra mim. Ali foi o ponta pé que eu precisava. Em 1994 recebi o convite pra trabalhar na TV Globo para compor e produzir músicas para dramaturgia, novelas e mini series. Uma escola pra mim. Aprendi muito mesmo, errando, acertando, colocando a mão na massa. Mergulhei fundo nessa linguagem, ouvindo os grandes compositores do cinema, Morricone, John Williams, Mancini, aprendi muito e desenvolvi a minha identidade também nisso, principalmente nas comédias, novela das 19 horas, que fiz com o Jorge Fernando.

DISCOGRAFIA – Seu processo de compor muda por ser uma trilha sonora?
Mu Carvalho – Sim, é diferente de compor pra um disco. Por duas razões: tempo e relação com uma história que foi escrita por um autor. Na novela, a quantidade de música que tenho que produzir, antes do primeiro capítulo ir ao ar é imensa. Algo em torno de 120, 150 músicas. Focando nos personagens, na trama. Isso tudo não existe quando você vai preparar um material para um disco.

DISCOGRAFIA – Tem duas passagens suas, em especial, pelo festival de Montreux que ganharam registros históricos, que foram as apresentações com o A Cor do Som e com o Gilberto Gil. Como foram esses shows, numa época em que havia espaço pra muito improviso, muita fusão? Que importância esses registros tiveram pra ti?
Mu Carvalho – Eu tinha 20 anos, imagina o quanto representou pra mim aquela experiência, tocar no palco mais importante do mundo do Jazz, no dia seguinte do show do Ray Charles, e ainda com a minha banda e como side musician do Gil. Parece um sonho.

DISCOGRAFIA – Você já dividiu o palco e gravou com o Legião Urbana, uma banda cujo o som não remete ao que normalmente se conhece do seu trabalho. Como nasceu essa parceria e como foi essa experiência?
Mu Carvalho – Quado A Cor do Som deu uma parada em 1987 eu me dediquei a acompanhar alguns cantores e cantoras como a Marina Lima, Fernanda Abreu, Luiz Caldas, eu precisava seguir trabalhando, e isso era bacana também. Em 1990, o Legião estava preparando a tour do disco As Quatro Estações, ensaiando no estúdio da EMI, o Renato teve a ideia de convidar um tecladista e meu nome foi citado num desses ensaios. O Rafael Borges, empresario deles naquela altura me procurou. Foi muito bacana, eram poucos shows e sempre para grandes plateias.

DISCOGRAFIA – Em 1993, você fez parte de uma superbanda brasileira, junto com Ritchie, Dadi, Vinícius Cantuária e Claudio Zoli, os Tigres de Bengala, que chegaram a gravar um disco. Como nasceu esse projeto e por que ele acabou tendo vida curta?
Mu Carvalho – Foi engraçada. Tinha acontecido aquela turma dos Traveling Wilburys, guardando as devidas proporções, com o Roy Orbison, Tom Petty, George Harrison, Dylan. Enfim, a gente viu que alguns artistas amigos aqui estavam “disponíveis’, digamos assim, como o Ritchie, o Cantuária, o Claudio Zoli e achamos que seria uma boa ideia. No começo tinha também o cantor Marcelo Costa Santos e o Kiko Zambianchi mas eles logo pularam fora, viram que seria encrenca… aahaha Muito cacique pra pouco índio. A banda durou 15 minutos.

DISCOGRAFIA – Ter uma obra registrada num livro de partituras coloca o compositor num patamar acima, afinal trata-se de um registro que interessa a quem de fato estuda essa obra. No caso da sua obra, como você avalia esse seu trabalho de compositor?
Mu Carvalho – Como disse antes, a composição é a minha maior riqueza. Sou compositor antes de ser pianista, arranjador ou cantor. Sempre me dediquei muito à composição, desde o começo, minha primeira relação com a música, quando sentei pra tocar o piano, eu já estava compondo. Esse registro é muito importante, uma vitrine da nossa cultura. Brasil é de uma riqueza imensa, temos a Bossa, que já está carimbada no mundo, o baião, o choro, o maracatú, nossas valsas, enfim. É preciso que os músicos, as escolas do mundo todo tenham acesso à esse material.

DISCOGRAFIA – O Brasil e o mundo vivem um momento único de crises sanitárias, políticas, econômicas, morais. Sendo alguém que viveu os anos de ditadura fazendo música numa banda que sempre pregou a liberdade, a dança, a alegria, como você tem percebido e se defendido dos novos tempos?
Mu Carvalho – Difícil. Muito complicado lidar com esse momento. Na verdade esse processo começou há algum tempo e vem piorando recentemente. Nosso patrimônio cultural abandonado, a garotada não conhece Caymmi, Assis Valente, Nazareth, Villa-Lobos então (!!!), uma pena. A música comercial, a grande parte do que toca nas rádios, é ruim, o jabá tomou uma dimensão absurda. Eu tive uma música vetada pela censura nos anos 1970, uma parceria minha com a Rita Lee, Moleque Sacana. Era complicada aquela época, mas as tribos eram mais antenadas com a cultura, a gente ouvia Novos Baianos, Caetano, Gil, Chico, eram músicas lindas e definitivas. Minha esperança é que a internet, de alguma forma, ajude a mudar esse cenário atual.

DISCOGRAFIA – Além do livro, que planos você tem em vista, tanto solo como com A Cor do Som?
Mu Carvalho – Sim, vamos lançar um disco novo d’A Cor do Som agora no dia 30 de julho. 100% instrumental, no meio dessa selva. São oito músicas, metade desse repertório é dedicado ao cultuado disco ao vivo em Montreux. Novos arranjos de Dança Saci e Chegando da Terra (essas nunca haviam sido gravadas em estúdio), Espírito Infantil e Arpoador. E outras quatro que são muito representativas da nossa carreira.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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