Tem sabores e sensações que ficam marcados pra sempre na nossa lembrança: o primeiro banho de mar, o primeiro picolé, primeiro beijo, gole de cerveja e por aí vai. Para o artista da música, o lançamento do primeiro disco, ainda mais na época de ouro das grande gravadoras do Sul maravilha, tinha também esse sabor especial. Dito isso quero começar aqui na coluna a falar de primeiros discos de alguns artistas que considero fazerem parte da minha formação musical.

Vou começar pelo nosso menestrel-mor Belchior e seu disco de 1974 que ficou conhecido como Mote e Glosa.

Bel já tinha lançado dois compactos simples, (mini lp com um música de cada lado) em 1971 pela Copacabana (Na Hora do Almoço e Quem me Dera) e em 1973 pela Chantecler (Sorry Baby e A Palo Seco), mas foi só em 1974 que juntou um conjunto de canções que veio a ser a sua estreia em LP (long play).

O disco foi produzido por Marcus Vinicius, um músico pernambucano radicado na Paraíba e que chegou em 1969 no Rio de Janeiro para estudar arranjo e composição no conceituado Instituto Villa Lobos. Foi através de Walter Silva, radialista e produtor conhecido por ter lançado o disco do Pessoal do Ceará (com Ednardo, Rodger Rogério e Teti), que Marcus chegou a Belchior. Segundo ele, passavam a noite organizando as músicas, no dia seguinte ele fazia o arranjo e orquestração, e mostrava ao Bel. Uma pena que a ficha técnica seja muito reduzida, só cita o estúdio (Sonima), alguns técnicos (Zorro, Índio e Carlinhos), fotógrafo (Mario Luis Thompson), capa (Oscar Paolillo) e não cita o nome de nenhum músico participante.

A bolacha abre com a faixa título, num ponteio de viola logo seguido de uma guitarra distorcida e a letra com influência de poesia concreta, que permeia o disco quase todo, anuncia: ” É o novo, é o novo… Você que é muito vivo me diga qual é o novo”, sinalizando uma ruptura com o último movimento musical inovador que foi a Tropicália, que ele explicitaria na frase “Em que um antigo compositor baiano me dizia tudo é divino, tudo é maravilhoso”, da música Apenas um Rapaz Latino Americano do disco Alucinação. A música tem boas intervenções de flauta e uma sanfona num clima meio baião que dão o tom do que virá por aí.

Três hits estão em suas primeiras versões aqui registradas. A Palo Seco, a música mais cult bacaninha até hoje entre os novos fãs do Bel, que teve gravações de Ednardo, Fagner, Lós Hermanos e Oswaldo Montenegro, tem um arranjo com um longo e bonito solo de sax e orquestração bem cuidada de cordas. Lembra os arranjos de Hareton Salvanini, o “George Martin do Pessoal do Ceará”.

Na Hora do Almoço já era vencedora do IV Festival Universitário e vem com arranjo de cordas em Ostinatto (repetição melódica), lembrando toques Beatles de Strawberry Fields Forever e os acordes de Dear Prudence. É sucesso até hoje nas rodas de violão em fogueiras. Todo Sujo de Batom só teria a versão definitiva no disco Coração selvagem, mas não faz feio com violinos e saxes em contraponto com a letra que fala de algo que parece termos já vivido em algum lugar do passado…

Senhor dono da Casa e  Rodagem já prenunciam temas recorrentes, como a vida na cidade grande sem esquecer as raízes. A primeira com os versos “Juntei as economias pra gastar nos maus dias…” e segunda que tem até um clima de música sertaneja: “semana que entra, no primeiro dia, te encontro na feira, Luzia”.

O lado mais experimental do disco, flerta com o erudito, música e poesia concreta como em Bebelo que começa com improvisações livres, cai num tema de viola em clima ternário, até chegar num uníssono (melodia feita por dois instrumentos ou voz) de violão e voz sensacional, e finalizar com o poema concretista inspirado nos poetas e irmãos Haroldo e Augusto de Campos.

Seguem Máquina I e II, a primeira em versão instrumental com influência de orquestrações dos Beatles, mostrando o talento de orquestrador de Marcus Vinicius, numa época que isso ainda era possível em disco de lançamento de um cantor de MPB. A segunda parte brinca com as sílabas da palavra “Máquina” e termina com uma máquina de escrever dando o ritmo. Cemitério já nos mostra o lado mais sacro de Belchior, que foi educado em um convento durante a juventude, mas finaliza com a frase “tudo é interior que babiloniou”. Mais genial impossível…

Apesar dos hits citados e do lado experimental, pra mim a cereja do bolo do disco é a faixa Passeio, que conheci em 2014 através do cantor e compositor Jonnata Doll, no show que fizemos em homenagem ao Belchior na primeira edição do festival Maloca Dragão. Hoje, também faz parte do repertório de vários artistas de gerações recentes sendo Daniel Groove um deles.

A canção é daquelas que nos dá a sensação de que já ouvimos antes, com a cadência de acordes bem surrada por Dylan, Lennon e outros hits do pop anos 1960 e 70. Só acho que o tom dele seria melhor um pouco mais baixo. Mas não compromete em nada a versão final.

Traz ainda uma letra que merece ser apresentada aqui na íntegra:

” Vamos andar
Pelas ruas de São Paulo,
Por entre os carros de São Paulo,
Meu amor, vamos andar e passear.
Vamos sair pela rua da Consolação,
Dormir no parque, em plena quarta-feira,
E sonhar com o domingo em nosso coração.

Meu amor, meu amor, meu amor:
A eletricidade desta cidade
Me dá vontade de gritar
Que apaixonado eu sou.

Nesse cimento, meu pensamento e meu sentimento
Só têm o momento de fugir no disco voador.
Meu amor, meu amor, meu amor!”

O disco Mote E Glosa envelheceu bem e recentemente foi relançado em vinil 180 gramas, e pude conferir como tem uma qualidade incrível também no aspecto sonoro, de mixagem, definição dos instrumentos, voz. Nos shows que fiz com Belchior, no período entre 1998 e 2007, os  hits citados Na Hora do Almoço, A Palo Seco e Todo Sujo de Batom sempre estiveram no repertório.

Mimi Rocha é músico e produtor. Ele escreve nesse espaço quinzenalmente

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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