O ano de 1973 já foi definido pelo jornalista Célio Albuquerque, no título do seu livro, como o “O Ano que Reinventou a MPB”. E foi nesse cenário, com grandes lançamentos de Raul Seixas, Luiz Melodia, Odair José, Secos & Molhados, Caetano Veloso, Chico Buarque, Eumir Deodato e tantos outros nomes de peso, que foi lançando o primeiro disco solo de Raimundo Fagner, Manera Fru Fru, Manera: O Último Pau de Arara.

Pedi a alguns amigos que me ajudassem a entender a importância desse disco que considero um clássico, 47 anos após o seu lançamento. A cantora e compositora Mona Gadelha acha que o fato de estarmos comentando uma obra depois de tantos anos de lançamento, demonstra a atemporalidade, a sua força criativa e o fato de ser uma obra-prima. A parceria Fagner e Ricardo Bezerra é um dos encontros mais belos e viscerais da construção do cancioneiro cearense. A gente percebe uma afinidade imensa – de sons e de amizade, que marcam o trabalho de uma dupla de compositores, como tantas parcerias históricas na música.

É tanta coisa pra falar do Manera… Mas vou me deter no canto de Fagner, que sacudiu a MPB na época, trilhando um caminho original, com uma marca pessoal que viria a influenciar gerações. Esse canto de Fagner é genuinamente cearense e sua escola tem como representante também o grande compositor Chico Pio. O canto rasgado, das entranhas, gritado, chorado, cheio de sentimento, meio cigano, meio árabe, meio sertão e tudo junto.

O arquiteto, artista plástico e compositor Totonho Laprovitera acrescenta:

– Foi em 1973, quando ouvi a primeira vez o Manera Frufru, Manera, em minha atrevida radiola portátil Philips. Aí, causou-me curiosidade aquela voz incomum que rasgava os padrões caretas da arte de cantar. Era Raimundo Fagner. O disco passou a significar para mim a possibilidade de embaralhar arte e vida, na ousadia de se estabelecer a personalidade própria autoral.

O cantor e compositor Humberto Pinho sintetiza sua maior influência acrescentando que Manera Fru Fru foi “o start para minha ligação com a música. Ao ouvir Canteiros, em 1982, aos 16 anos, eu definitivamente iniciei minha jornada musical. É uma obra atemporal e muito forte, até hoje me emociona ouvi-lo”.

O parceiro da faixa título e amigo de anos de convivência no tempo do sítio na Maraponga, Ricardo Bezerra, com conhecimento de causa, considera que o disco é, com certeza, um divisor de águas na história da MPB. Imaginem um artista bem jovem, vindo de um distante canto do País – o Ceará daquela época – depois de uma passada rápida por Brasília, onde ganhou vários prêmios no maior festival da cidade, e de lá, seguiu para o Rio de Janeiro. Rapidamente chegou ao topo da indústria fonográfica do País, contratado pela melhor gravadora que havia na praça.

Conquistando seu espaço com uma garra danada, depois de passes certeiros e predestinados, ele produziu um LP que até hoje soa moderno, que impressionou e fascinou o Brasil todo de Norte a Sul. Era um último pau de arara que chegava para encontrar seu lugar e, melhor, vindo pra ficar e pra valer.

Polêmicas a parte, o disco, que não considero ser o melhor de Fagner, tem na irregularidade e nas suas várias facetas musicais o seu maior charme.

Vamos as faixas?

O disco abre com o subtítulo O Último Pau de Arara, da dupla dos anos 1950 Venâncio e Corumba, tem na letra todo o imaginário que um nordestino vivencia de ter que sair rumo ao “Sul maravilha” e traz já a assinatura da voz e do violão de Raimundo, o arranjo é bem minimalista com algumas intervenções de sanfona.

Nasci para chorar, que é uma versão de Erasmo Carlos, explicita o amor de Fagner pela Jovem Guarda. Tem um clima meio soul com bom arranjo de cordas e guitarras de Luís Cláudio Ramos, futuro maestro e músico da banda de Chico Buarque.

Penas do Tiê tem a amiga Nara Leão e sua bela voz num choro-canção com um violão de sete cordas muito bom provavelmente do mestre Dino (a ficha técnica do disco não cita os músicos).

Moto 1, parceria com Belchior, é uma balada que vira um funk anos 1970, lembra na letra de Tommy, do The Who (“Olhe me, veja me”/ “See me, feel me”). Tem boas intervenções de bateria, provavelmente de Chico Batera.

Mucuripe, um dos hits do disco, tinha sido gravado um ano antes por Elis Regina e depois também por Roberto Carlos. É mais uma parceria com Belchior e pode ser considerada uma das mais belas canções cearenses de todos os tempos. O arranjo muito bacana de cordas é de Ivan Lins e mostra o senso harmônico apurado de Fagner ao violão.

Como se Fosse, parceria com Capinan, é bem dramática e reforçada pela percussão de Naná Vasconcelos com o violão do autor em destaque num arranjo bem enxuto. Pé de sonhos, dos geniais Petrucio Maia e Soares Brandão, alterna uma marchinha com direito a tuba e flautim e uma parte mais recitativa. Tem novamente a participação de Nara Leão que, com sua voz bem colocada, dá um ar brejeiro à faixa. Raimundo canta com voz suave nela também.

Canteiros inaugura o gênero “balada cearense em ré maior”, que será recorrente na obra da turma de cá. Tem um piano muito legal, citação de “Águas de março”. Essa música foi retirada das tiragens seguintes do disco por conta de processo de plágio movido pela família da poetisa Cecília Meireles. Fagner explicou que no encarte, que acabou não saindo com o disco, ele dava o crédito. Polêmicas á parte, é ainda hoje uma das músicas cearenses mais tocadas em bares e show de vários artistas.

Sina, parceria com Ricardo Bezerra com toques de Patativa do Assaré, é uma da minhas favoritas com belo arranjo barroco, um solo ótimo de gaita e cordas. Tambores segue na linha de Como se Fosse, com violão e percussão (Naná e ou Chico Batera) tem um violoncello pontuando a melodia. A letra é de Ronaldo Bastos.

Serenou na madrugada é uma toada sertaneja do folclore, com adaptação de Fagner e participação do baixista americano Bruce Henry fazendo a segunda voz. É uma faixa bem divertida.

A faixa título, Manera Frufru Manera, parceria com o genial Ricardo Bezerra, tem letra brincando com sons e cita o apelido de uma prostituta ali do farol, segundo Ricardo. É a faixa mais experimental do disco e deve ter sido criada nos saraus do sítio da Maraponga. A percussão marcante e o violão dão o tom junto com os vocais e, no final, uma rabeca complementa o clima meio hippie da faixa. Ricardo a regravou no seu disco Maraponga com arranjo de Hermeto Pascoal.

O disco, no seu lançamento pela Philips, vendeu poucas cópias, mas foi relançado após o sucesso do disco Raimundo Fagner já por outra gravadora (CBS – Cearenses bem sucedidos, como diziam…)

Em 2013 Zeca baleiro produziu e participou com Fagner do show de 40 anos de Manera Frufru Manera no teatro Municipal de SP com casa lotada.

Em 2015 fui convidado para dirigir uma releitura do Manera para a Maloca Dragão, com produção de João Wilson e Marcio Caetano, e com o cantor Marcos Lessa. Pra mim foi uma experiência muito enriquecedora passar para a partitura do disco inteiro e refazer alguns arranjos.

Marcos ficou muito feliz com o convite e comenta sobre o disco:

– Considero Manera Fru Fru uma verdadeira joia no universo discográfico da música popular brasileira. Há alguns anos, já adulto, comprei uma vitrola e tive a alegria de ouvi-lo pela primeira vez em Vinil. É uma confluência de maravilhas: repertório incrível, o registro de voz do Fagner, a participação da Nara e a produção, como sempre magistral, do (Roberto) Menescal. Ouçam!

O disco tem coordenação de produção de Roberto Menescal, direção de Paulinho Tapajós, arranjos de Luís Cláudio Ramos (que hoje é maestro do Chico Buarque), capa sensacional do Cafi. Foi gravado nos estúdios Phonogram.

Após esse tempo todo é um prazer renovado ouvi-lo. Boa escuta!

Mimi Rocha é músico e produtor. Ele escreve nesse espaço quinzenalmente

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles