Em tempos de quarentena e isolamento social, a Coordenadoria de Comunicação Social e Marketing Institucional (CCSMI) lança o UFC Talks, série de entrevistas com professores e pesquisadores de diferentes áreas para nos ajudar a refletir sobre assuntos específicos inseridos em grandes temáticas. As entrevistas estão disponíveis no portal ufc.br com divulgação em todas as redes sociais da Universidade Federal do Ceará.

Para começar, na temporada de estreia vamos conversar sobre os desafios impostos pela pandemia do novo coronavírus. A primeira entrevistada é a psicóloga Kelen Gomes Ribeiro, doutora em Saúde Coletiva e professora da Faculdade de Medicina e do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da UFC.

Nessa conversa, ela fala sobre medo e ansiedade neste período de isolamento, dá dicas para manter a saúde mental e de como deve ser a relação com as crianças neste momento. “É importante que se desenvolva um movimento para desacelerar, numa perspectiva de busca do repouso e de confortos, evitando a instalação de mais mal-estar”, diz.

Quem é Kelen Ribeiro?

ufc{talks}  – Por que é tão difícil atravessar este período de isolamento social?

Kellen Ribeiro – O distanciamento ou isolamento social promovido para diminuir a propagação do novo coronavírus é uma medida muito relevante, mas tende a ser difícil porque traz muitas implicações, inclusive psicológicas. Não será vivido da mesma forma por todos; pode ter contornos diferentes. Somos seres biopsicossociais; construímos nossa identidade na relação com a gente mesmo e com os outros. Viver junto com outras pessoas é algo importante para o ser humano.

Historicamente, isso fez com que aumentasse a sobrevivência da espécie. Em conjunto, ficou mais viável conseguir alimento e construir abrigo, por exemplo. Isso inclui os mecanismos psíquicos: com a intenção de sobrevivência, nós nos mantemos em contato. Com menos contato, tendemos a ficar em alerta. Ancestralmente, estar sozinho significa perigo.

Estamos diante de perigos reais, que desencadeiam medo e ansiedade. O medo é fomentado por aspectos bem palpáveis: medo do adoecimento, do meu próprio, do de pessoas queridas e de pessoas com quem eu possa ter tido contato; medo de apresentar sintomas graves e não contar com assistência em saúde; medo de chegarmos a uma situação em que não teremos como cuidar de filhos ou de outras pessoas que contariam com nossos cuidados; e medo da morte.

São muitas possibilidades de perdas, o que nos remete também ao apego, nossa capacidade de construir vínculos com os outros. A teoria do apego de Bowlby nos dá elementos para compreender a tendência das pessoas para estabelecer fortes laços afetivos. Dentro dessa teoria, os laços não se desenvolvem apenas para satisfazer a instintos biológicos, como o de alimentação e o sexual, mas também por necessidade de segurança e proteção. Temos a forte reação emocional que ocorre quando esses laços ficam ameaçados ou rompidos.

Estudos mostram que, além do medo da morte em si, associam-se a ele: 1) o medo da dor e do sofrimento; 2) o medo da dependência e; 3) o medo de estar sozinho na hora de morrer. Nossa tristeza profunda quando vemos os caminhões da Itália levando os corpos também se relaciona a isso; sabemos que essas pessoas muito provavelmente não estiveram com suas famílias nos momentos finais de suas vidas. Nesse contexto, dentro de casa, há grande possibilidade de as pessoas sentirem tristeza, raiva, saudade e mesmo falta de esperança.

Junto com isso entra a ansiedade, que tem relação direta com a vivência da falta de controle da situação. Uma característica do estado ansioso é a excitação, que promove uma aceleração do pensamento.  A literatura aponta que ocorre uma elaboração, com a tentativa de planejar uma maneira para eliminar o perigo no menor espaço de tempo possível. Esse movimento mental, no contexto atual do coronavírus, é ineficiente. A sensação de perigo continua e a conclusão de que ainda não é possível eliminá-lo leva a um ciclo vicioso, porque essa sensação aumenta o estado ansioso.

Para que a gente saia desse ciclo, é importante que se desenvolva um movimento para desacelerar, numa perspectiva de busca do repouso e de confortos, evitando a instalação de mais mal-estar.

Índices de isolamento social no Ceará nas últimas semanas.

ufc{talks} – Diante disso, o que fazer para tentar manter a saúde mental e reduzir a ansiedade?

Kellen Ribeiro  – Estamos diante de crises e precisamos tentar lidar da melhor forma possível com elas.  A OMS [Organização Mundial da Saúde] apresentou um guia com dicas para enfrentar consequências psicológicas vividas neste período. Quero destacar algumas e reforçá-las.

Evite a busca excessiva de informações. Escolha um ou dois momentos do dia para se informar, em fontes fidedignas, como o próprio site da OMS ou de outras autoridades competentes. É importante diferenciar os boatos, as atuais “fake news”, dos fatos.

Crie oportunidades para tratar de histórias positivas de pessoas que tiveram a COVID-19, como as que já se recuperaram e estão bem.

Se está trabalhando, busque pausas. Essa crise nos impulsiona para sair do automatismo;

Se está em casa, tente criar uma rotina com tarefas regulares: limpar os cômodos, cozinhar, fazer atividade física, trabalhar, se for o caso. A rotina aumenta a previsibilidade e isso contribui para diminuir a ansiedade. Se estiver na companhia de outras pessoas, organizem-se para que ninguém fique sobrecarregado.

Crie possibilidades de atividades prazerosas, como escutar música ou assistir a filmes. Atividades manuais também tendem a ser benéficas. Se você se sente em condições de resolver pendências, resolva-as. Mas não faça disso uma obrigação.

Procure ser mais cuidadoso com sua alimentação. Pare de consumir aquilo que lhe causa dano: desde alimentos a notícias. A gente precisa ter condição de “digerir”, física e simbolicamente, aquilo que chega.

Fique em contato com a família e os amigos, fortaleça os vínculos afetivos com o uso dos recursos que temos. Ter uma rede de apoio é considerado um dos determinantes sociais da saúde e, para a atualidade, essa rede precisa passar a funcionar de maneira diferenciada.

Dedique-se ao auxílio de outras pessoas, vizinhos, idosos, pessoas em situação de vulnerabilidade social. Alguns precisarão de recursos materiais e outros ficarão bem satisfeitos apenas com ligações frequentes. Centre sua atenção também em pessoas que moram sozinhas. Além do benefício objetivo de quem recebe ajuda, temos que a sensação produzida no corpo após um ato generoso contribui para nossa saúde física e mental.

Tente sustentar a perspectiva do sono regular, procurando manter inclusive o horário habitual. Temos noção do quanto isso é desafiador neste momento em que estamos muito inquietos. Uma dica importante é deixar fluir os pensamentos, sem se fixar neles, como nos exercícios de meditação – para quem ainda não teve a oportunidade de meditar, temos aplicativos e muitos vídeos na Internet com meditação guiada, por exemplo. Especialmente próximo ao horário de dormir, evite concentrar o pensamento em assuntos que estão fora do seu controle, como a crise sanitária em si, a atitude de outras pessoas, os cenários políticos ou as repercussões de tudo na economia mundial.

Procure profissionais de saúde se avaliar que sua situação ou a de outras pessoas precisam de suporte qualificado em saúde mental. O Conselho Federal de Psicologia, inclusive, flexibilizou normas para serviço psicológico remoto neste momento.

Estamos diante de incertezas; não precisamos estipular o período de duração da pandemia e, somente a partir disso, reorganizar nossas vidas. “Viver um dia de cada vez”, com adaptações, com ajustamentos criativos. É um momento muito oportuno para focarmos nos sentidos de nossas vidas, nas nossas riquezas interiores, na nossa capacidade de acessar aquilo que é sagrado para nós.

Trazemos dicas que podem contribuir com a vida das pessoas, mas, em alguns momentos, muito provavelmente não conseguiremos segui-las. E é importante que aceitemos isso também. Não precisamos nos cobrar “alta produtividade” agora.

Quando nos sentirmos mais agitados, podemos iniciar o exercício de inspirar e expirar mais lentamente, por exemplo. Consigo trabalhar com minha respiração? Isso já é um passo bem importante! Posso mudar meus pensamentos? Que tal lembrar paisagens bonitas?  Dá para relembrar cenas alegres? Ligar para alguém que seja referência para a sua segurança é possível?

Temos um exercício importante que é reconhecer os nossos sentimentos e sensações, aprofundar nosso autoconhecimento; entrar em contato com o que sinto e, a partir disso, ter mais clareza do que estou precisando, seja de cuidado, seja de serenidade, seja de esperança; buscar fortalecer nossos momentos de tranquilidade. Podemos, quem sabe, ter a esperança de que tudo isso nos leve a reflexões profundas sobre nossos próprios estilos de vida, nosso cotidiano, nossas crenças, nossas prioridades, trazendo a possibilidade de nos (re)inventarmos como habitantes do planeta Terra.

Em alguns momentos, muito provavelmente não conseguiremos seguir as dicas (de preservação da saúde mental). E é importante que aceitemos  isso também. Não precisamos  nos cobrar 'alta produtividade' agora.

ufc{talks} – Como lidar com as crianças em situações como essa?

Kellen Ribeiro  – Repito a ideia de que, com a subjetividade humana, não há “fórmula mágica”, mas temos estudos e experiências que mostram maneiras para lidar melhor com as situações.  Nós trabalhamos com tanatologia, que aborda os processos emocionais e psicológicos que envolvem as reações à perda, ao luto e à morte. Muitas pessoas querem saber como abordar esses assuntos com crianças, especialmente com as crianças pequenas.

O que as pesquisas evidenciam é que, diferentemente do que a gente pensa a partir do senso comum, que a idade da criança seria um fator decisivo na comunicação de notícias difíceis, têm mais relevância a própria atitude dos pais em relação à morte, a franqueza com os filhos  para tratar desse tema e o apoio recebido da família.

Nesse contexto de pandemia, em que as pessoas estão vivendo lutos, a forma como os pais ou outras pessoas de referência lidam com as questões atuais influenciará muito a vivência das crianças.  E o que temos de recomendações?

Ajude as crianças a se expressarem, a trazerem à tona seus medos e ansiedades. Cada criança terá sua maneira de fazer isso. Brincadeiras, jogos e desenhos podem ajudar nessa expressão. Independentemente da forma em si, o importante é que se sintam seguras para expressar aquilo que as mobiliza no momento.

Conserve a proximidade das crianças com seus pais, familiares ou responsáveis. Já escutei situações de pais profissionais de saúde em atividade que consideraram mais seguro deixar seus filhos com parentes próximos. Para eles foi possível; os familiares estavam com essa disponibilidade e há vínculo forte com as crianças. É importante que, mesmo nesses casos, o contato com os pais seja garantido diariamente, com a forma remota mais adequada para a idade dos filhos.

Mantenha a rotina da casa, o que serve para todos. Se possível, construa novas rotinas com as crianças, com atividades lúdicas e pedagógicas. É importante envolvê-las nas atividades domésticas e incentivá-las para que continuem brincando, socializando-se com os de dentro e de fora de casa, respeitando o distanciamento social. Tenho visto, por exemplo, crianças com mais de 5 anos conversando por aplicativos de comunicação, narrando seus dias, mostrando suas brincadeiras de casa, inventando jogos e outros modos de brincar junto, mesmo em casas separadas.

Atente para o fato de que, em momentos de crise, a criança tende a buscar e solicitar mais dos pais. A sugestão é que os pais falem sobre a COVID-19 de forma honesta e apropriada à idade deles, com explicações sobre as medidas necessárias para prevenção. Temos material lúdico disponível, como músicas da turma da Mônica que abordam o comportamento adequado em tempo de pandemia do coronavírus.

Se eles tiverem preocupações, o fato de explicitá-las pode ajudar a reduzir a ansiedade. Mas vamos lembrar que é muito importante o estado dos pais ou responsáveis. Além daquilo que é dito, ficam os gestos, a expressão das emoções. A partir daí, as crianças desenvolverão seus próprios recursos para lidar com a situação, sempre com a necessidade de apoio.

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Claro que isso é desafiador para os pais, que estão com muitas outras preocupações. Mais uma vez, a gente não precisa se cobrar tanto nesta hora. Não precisa ser a “supermãe” ou o “superpai” e fazer todo o manual de brincadeiras legais, quando a gente precisa limpar a casa, fazer a comida e, possivelmente, cuidar de alguém doente, viver nossos lutos. Muitos estão com trabalho em casa e as crianças estão recebendo atividades escolares diariamente também. Nós não estávamos preparados para a escolarização domiciliar: nem as escolas, nem as crianças, nem as famílias. E temos desafios nesse sentido também!

Ao mesmo tempo, estamos diante de uma oportunidade de aprender intensivamente a “encarar” as frustrações, aprender sobre a convivência familiar 24 horas, sobre solidariedade, sobre empatia, sobre resiliência – nossa capacidade de lidar com os problemas, com os ditos “perrengues”, e de resistir às diferentes pressões que a vida traz. Certamente, teremos efeitos dessa pandemia na nossa subjetividade e é importante que a gente pense nisso desde já, para que prevaleça o cuidado não “só” com as crianças mas com a gente mesmo e com os outros, numa perspectiva ampla.

Fonte: Coordenadoria de Comunicação Social e Marketing Institucional – e-mail: ufcinforma@ufc.br

About the Author

Valeska Andrade

Formada em História pela Universidade Federal do Ceará e em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especialista em Cultura Brasileira e Arte Educação. Coordenou o Programa O POVO na Educação até agosto de 2010. Pesquisadora e orientadora do POVO na Educação de 2003 a 2010, desenvolveu, entre outras atividades, a leitura crítica e a educomunicação nas salas de aula, utilizando o jornal como principal ferramenta pedagógica. Atualmente, é professora de história da rede estadual de ensino. Pesquisadora do Maracatu Cearense e das práticas educacionais inovadoras. Sempre curiosa!!!

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