Um olhar para o horizonte. Foi o que bastou, no primeiro dia do ano, em uma varandinha na casa dos pais, para Maisa Vasconcelos mudar a perspectiva sobre a cidade de Fortaleza. “Foi exatamente assim”, recorda a decisão que a fez permanecer na capital alencarina.

Maisa não chegou às 15h, como planejado. “Estou a caminho! Vou atrasar alguns minutos”, foi a mensagem que recebi oito minutos antes da hora marcada. O tempinho a mais teve sua lógica. É que, em meio ao trânsito, eis que surge o instante de Cartier. O momento precisava ser registrado.

“Será que ele dorme para sonhar com uma cidade melhor?” Questionou, apontando para a foto publicada no dia que iniciou agosto. A imagem mostrava um homem dormindo em baixo de uma marquise e um otimista carrinho de mão no qual a frase “eu acredito no poder dos sonhos” chamou atenção da jornalista.

Atenta ao seu redor, ela deixa claro o vínculo afetivo com o projeto. “Acho que a gente teme que tudo se perca”, diz, incluindo a si no hábito quase compulsivo de capturar lembranças.

Com mais de 25 anos apresentando programas de TV, além de sua passagem no rádio e no jornal impresso, Maísa reconhece a fotografia como forma de se reencontrar dentro da cidade-personagem. Para o @fortaleza365, projeto de memória no qual compartilha uma foto por dia durante o ano inteiro, a fotografia é estabelecida como modo de narrativa e, principalmente, pertencimento.

Imagem: Ribamar Neto

Imagem: Ribamar Neto

Em entrevista honesta ao Repórter Entre Linhas, Maisa Vasconcelos discorre sobre as motivações do projeto Fortaleza 365 ao mesmo tempo que discute jornalismo, cidadania e o futuro do perfil que conquistou mais de 3.600 seguidores, em sete meses, no Instagram.

(…) a cidade é enorme. É muito maior do que qualquer projeto possa abarcar. Ela tem tanto pra dizer que se eu fizer um Fortaleza 1365, ainda não ia dizer o que ela quer que diga”. – VASCONCELOS, Maisa.

Como o projeto surgiu?

Maisa Vasconcelos: O Fortaleza365 surgiu de um olhar para o horizonte, ao acaso. Ano passado, decidi romper com uma fase da minha carreira de jornalista. Saí da televisão, algo que fiz por mais de 25 anos. Eu não tinha um plano b, só sabia que faria trabalhos como freelancer. E na casa dos meus pais, numa varandinha que tem lá, eu olhei para o azul do horizonte, para os telhados e eu disse “eu vou fazer alguma coisa”. Foi assim, exatamente assim. Como eu já tava pensando em sair de Fortaleza, ano passado pensei muito em sair – no dia 1º de janeiro, eu disse: “não vou sair daqui agora. Eu vou estabelecer uma meta, vou fazer um projeto e vai se chamar Fortaleza365”. A primeira foto foi essa: telhados de um bairro de periferia, onde eu vivi muitos anos, desde os 4 anos de idade.

Você tem uma pauta todo dia?

Maisa: O Fortaleza365 é tudo, cabe tudo e eu me propus a isso. Fiz uma lista que tem quase 200 itens entre lugares que eu vi, vivi e tive vontade de revisitar. Tem nomes de pessoas que eu conheço e queria conversar e compartilhar essa conversa no projeto e tem nomes de pessoas que eu não conheço e queria conhecer. No entanto, é como o repórter que sai com uma pauta e no meio do caminho ele encontra outra.

Bastidores da postagem do dia 22 de janeiro. Imagem: Samuel Miranda

Bastidores da postagem do dia 22 de janeiro. Imagem: Samuel Miranda

O que ainda falta visitar?

Maisa: Muita coisa. Eu queria que o ano fosse maior. (Risos) Por um lado, isso me diz o seguinte: a cidade é enorme. A cidade é muito maior do que qualquer projeto possa abarcar. Ela tem tanto pra dizer que se eu fizer um Fortaleza 1365, ainda não ia dizer o que ela quer que diga. Cada pessoa é um gigante dentro da cidade e isso é um aprendizado incrível para quem tava no dia 31 de dezembro sem perspectiva.

Eu tenho aprendido muita coisa, muita. Às vezes até a ter paciência, a olhar com mais calma. Com mais afeto mesmo. A palavra afetividade, ela tá todo dia. Acho que é um das coisas que mais se assemelham com o Fortaleza365.

Você considera o projeto uma reportagem afetiva?

Maisa: Acaba sendo uma reportagem porque todo dia é um recorte, né? Se eu quiser posso costurar esses recortes, essa narrativa e fazer dali uma grande reportagem sobre a cidade. Ou uma grande crônica. Tem o aspecto do olhar pro cotidiano da cidade, tem os personagens, tem um pouco da crítica que eu faço dizendo ou deixando de dizer. É uma narrativa textual e visual. Acaba sendo uma reportagem afetiva, uma crônica, uma mistura de tudo.

Qual é a memória afetiva mais forte que você tem das fotos?

Maisa: Várias. A primeira foto pode não dizer nada para outras pessoas, embora ela diga, porque tem comentários lá e eu percebo isso. É uma memória da minha infância, dos quintais com frutas, dos telhados, da Fortaleza horizontal. A pracinha do bairro onde morei durante muitos anos, a pracinha do João XXIII, o Monumento ao Vaqueiro, que eu brincada de subir naquele boi. O Passeio Público que eu vinha com meus pais… Essa memória afetiva tá presente em tudo. Dito ou não, mas tá tudo lá. É tanto que a descrição no perfil diz “alguma memória”. Sempre há.

Quando vc diz que “a cidade quer ser, e num átimo, ela já não é” tem a ver com o esquecimento?

Maisa: Tem e tem um pouco a ver do querer se amostrar porque Fortaleza é uma cidade que quer se amostrar. Fortaleza é espilicute! Cabe todos esses termos do cearencês, né? O Passeio (Público), não é um símbolo do querer se amostrar? Quando a gente sabe que aqui tinha os pisos diferenciados para as classes sociais. A sociedade que viu a Belle Époque queria copiar o modelo francês e trazer cá. Ora, pra dentro de Fortaleza? Ela quis, mas agora ela já não é. E num átimo é porque tudo passa muito rápido. Quando a gente olha passou. E a gente nem sabe o que vai ser.

Você acredita que esse esquecimento se deve aos governantes ou ao próprio fortalezense?

A foto, publicada no dia 1º de agosto, foi registrada na av. Júlio Abreu, a caminho do Passeio Público, onde a entrevista ocorreu. Imagem: @fortaleza365/Instagram

A foto, publicada no dia 1º de agosto, foi registrada na av. Júlio Abreu, a caminho do Passeio Público, onde a entrevista ocorreu. Imagem: Reprodução/ Instagram

Maisa: É uma coisa nossa. As pessoas dizem que Fortaleza é uma cidade sem memória. Não pode creditar isso à cidade. Tem que creditar a nós. É como se fosse uma coisa mágica, delegada a outros e por isso entregue a governos. Não, somos nós. E quando eu digo que a cidade é esquecidinha é uma coisa sarcástica. Somos nós que queremos o novo sem saber que novo é esse. Como é que você quer o novo se você não viu o que passou e não é senhor do que é hoje?

Na sua infância você ouvia muitas histórias da cidade?

Maisa: Tive menos daqui e mais do interior. Sou de Itapipoca e durante muitos anos a gente vivia como no interior porque Fortaleza era muito menor, parecia mais rural. Eu esqueço muito. O “alguma memória” é também porque sou esquecida. O Fortaleza365 é uma chance que eu tenho de consultar pessoas e voltar um pouco do que vivi e não ser mais uma fortalezense esquecidinha. É um modo que eu tenho de me forçar a procurar lembranças.

O Fortaleza365 vai continuar ano que vem?

Maisa: Eu quero como quem quer continuar um relacionamento onde há amor, onde há futuro, planos. Eu quero, mas eu não sei se eu vou. Tenho que avaliar.

É um compromisso com você.

Maisa: É, comigo. E é um compromisso pesado. A cidade se mostra mas as vezes a gente não vê. Às vezes, o meu estado emocional e o trabalho que estou fazendo no dia não me permite.

O projeto vai virar uma exposição. Como você está se preparando para isso?

Maisa: Eu tô com um medo! (Risos) A história é a seguinte: logo no início, se a gente for nos comentários – e os comentários são incríveis – as pessoas diziam que tinha que virar um livro. Basicamente isso, tem que virar uma exposição e um livro. Uma amiga disse: “inscreve nos editais culturais”. Mas eu nunca fiz isso. Sempre entrevistei os gestores culturais mas nunca atentei para o fato de que eu podia fazer isso. Aí eu fiz, ou melhor, tentei. Descobri que eu não sabia falar sobre o meu projeto, eu só sabia fazer. E tem também aí um pouco de entrave em relação à escrita. Tem porque tem. Sempre tive muito medo de escrever, sempre trabalhei com a linguagem oral.

Inscrevemos no edital do Dragão do Mar. Eu cheguei lá no último minuto, peguei a última ficha, inscrevi e foi selecionado. Ainda tenho que conseguir a grana pra fazer a exposição porque não é uma exposição tradicional de fotografia. Vai ter a projeção da imagem com a possibilidade de ouvir o texto. O projeto foi feito pra mobile então ele continua assim. E eu tenho a pretensão de que vire um livro digital. Tenho que batalhar por isso. Onde você estiver vai acessar o @fortaleza365 e ele vai ficar como consulta.

Fotos que eu fiz, deste ano, se eu voltar lá já não é mais a mesma coisa. Já mudou. Tem casa que já foi derrubada, tem árvore que já foi derrubada. Tem sinal que já não tá mais no lugar. Nada é mais como era.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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