Referência no movimento feminista, a artista baiana Karina Buhr trabalha a divulgação do político Selvática. O álbum, com participações de Elke Maravilha, Fernando Catatau e Edgard Scandurra, dá nome à personagem que, como uma guerreira indígena, recria o universo de violência em que vivem as mulheres. A capa do disco, em que ela, segurando uma lança Yanomami, mostra os seios, foi censurada pelo Facebook à época do lançamento.

Radicada no Recife desde os 8 anos de idade, mistura os ritmos em seus registros e confessa amor pelo Carnaval de Pernambuco. “Minhas maiores influências estão ali”, lembra. “Isso fica pra sempre. Posso fazer o barulho que for, no rock que for, isso sempre estará lá, faz parte de mim”. Karina apresenta o álbum nesta sexta-feira, 29, na Maloca Dragão 2016, em Fortaleza.

selvática1Selvática surge como um manifesto feminista. Em que momento você percebeu a necessidade de expressar isso?

Karina: Não é um manifesto, é um disco que tem no feminismo o tema central. A personagem selvática, que está na capa, que dá nome a uma música é quem guia. Criei o conceito disco a partir dessa personagem, ele se move a partir dela e em torno dela, foi desde o princípio. E dentro dessa guia falo sobre outras coisas. Inclusive, feminismo pra mim é sobre isso. Sobre poder falar sobre o que quiser, como na música Cerca de Prédio, que falo sobre especulação imobiliária, gentrificação.

Tem essa referência aos textos sagrados que tratam a mulher como uma representação do pecado. Ainda é muito forte essa ideia da mulher?

Karina: Não só como representação do pecado, mas também da pureza e principalmente da serviência e subordinação. Esse ‘ainda’ ainda vai durar muito. Está na base da cultura patriarcal, que é a que vivemos (em formatos diferentes, mas com essa base), no mundo inteiro. Sobre isso de ‘ideia da mulher’, não existe ‘a mulher’, mulheres são diferentes umas das outras, igualzinho como acontece com os homens. Essa distinção e esse destaque para ‘a mulher’ está no cerne de todo machismo, a ideia de que mulher é um ser outro, que o normal é ser homem.

O disco traz esse debate também na faixa Eu Sou o Monstro, mas outros temas sociais são abordados no álbum. Desde o começo do processo, foi intencional tratar desses assuntos?

Karina: Falo também de temas não sociais, a faixa Rimã é meio surrealista, se passa como num sonho, é poesia sem objetivo de denúncias. Dragão falo sobre obstáculos, Vela e Navalha é também mais surreal, um diálogo de ficção. Desperdiço-te-me é uma balada romântico depressiva. E aí tem os temas políticos fortes em Pic Nic, Esôfago (que fala de feminicídio), Cerca de Prédio, Conta Gotas (onde falo sobre imigrantes e ciganos), Alcunha de Ladrão, Eu sou um Monstro e Selvática. Sobre ser intencional, tudo que faço nos meus trabalhos é intencional.

karina e elke

Como você escolheu as participações da faixa Selvática?

Karina: Elke e Denise Assunção são duas figuras icônicas pra mim. Com Denise trabalhei no Teatro Oficina, na peça As Bacantes, em 2001, e desde então virei admiradora absoluta dela. Elke passou de ídolo de infância a amiga num processo bem emocionante. Fizemos juntas (também com Denise) o show Intercontinental, com as músicas do disco de Itamar Assunção. Quis tê-las por perto de novo. E foi muito bom, um presente dos deuses.

Como você se sentiu quando a capa do Selvática foi censurada pelo Facebook?

Karina: Achei péssimo, machista, careta, limitador, censor, mas no fim acabou viralizando a capa, de forma totalmente inesperada e isso acabou na verdade sendo bom. A capa foi muito mais vista e compartilhada do que se não tivesse sido vetada.

Você está em uma posição de referência do movimento feminista. Quando e como você percebeu isso?

Karina: Desde criança fui tolhida e machucada diariamente pelo machismo e daí a isso se desenvolver até onde estou foi natural. Percebi desde a primeira vez que ouvi ‘isso não é coisa de menina’.

Qual a importância de trabalhar com essa mensagem?

Karina: A importância da minha vida, da vida das mulheres todas, que são oprimidas desde que nascem, em casa, na rua, no trabalho, são assassinadas com muita naturalidade por ex-maridos e namorados (‘com aplausos do público’). No caso do Brasil, não ter o direito sobre o próprio corpo quando são obrigadas a parir mesmo contra a própria vontade (e as pobres, maioria negra, morrem ou ficam com sequelas físicas e emocionais graves). É toda essa importância.

Como você avalia a representação feminina hoje musicalmente?
Karina: A representação feminina sempre foi muito forte o que falta é a mídia, extremamente machista, dar o devido valor. Não tratar como segundo plano, como ‘música feminina’ ou ‘música pra mulher’, tratar como gente, como são tratados os homens.

O que ainda falta para o movimento?

Karina: Falta muito. Podemos começar por legalizar o aborto no Brasil.

Todo artista precisa ser político?

Karina: Um artista é uma pessoa como qualquer outra. Todos têm obrigações sociais e políticas e cada um escolhe seu jeito de fazer ou de não fazer as coisas. Escolho fazer e existem várias maneiras de atuação. Basicamente, acho que todo mundo que tem algum tipo de privilégio tem obrigação de tentar diminuir diferenças sociais e agir politicamente junto com os que precisam, por sua vida, dessa ação. E isso vale para todos, não precisa ser artista.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

View All Articles