Ilustração: Jéssica Gabrielle Lima

Por Ayla Andrade*
Ayla Andrade escreve quinzenalmente para o Leituras da Bel. Cronista, escritora e pedra de atiradeira, ela utiliza as palavras para narrar e costurar o cotidiano. Nessa semana, Ayla fala sobre os lugares e a cidade.  Confira:

Leia a crônica:

Há lugares na cidade que são tão habituais aos nossos olhos que já não os vemos.
Aquele caminho que a gente faz todo dia pra chegar ao trabalho, pra chegar a faculdade, pra voltar pra casa, aquela árvore no mesmo local, as pessoas corridas… a gente nem percebe as ranhuras de algo novo qualquer que se apresente.

No dia-a-dia a gente vai empurrando tudo pro cérebro dar conta: já sei o caminho, que bom, sem surpresas.

Claro que nos habituamos a olhar determinados lugares e reconhecê-los. Reconhecimento como conduta do conhecer novamente, do afeto, do apego. Não dá para viver o tempo todo de surpresas.

Mas… e o coração? E os olhos de admiração do mundo? Acostumados ficam. É quase susto observar uma construção nova, um buraco na calçada, uma rua em desvio. Atrapalha o dia.

Mas a questão é: e aquele sopro de novidade no olhar? Aquele descortinar-se para algo quando da primeira vez, onde você guarda pra usar na sua cidade costumeira?
Será que percebemos que a cidade é habitada de pessoas tantas? Que ela muda constantemente nos lugares de sempre? Que é possível o arrebatamento na cidade corriqueira? E que há uma cidade invisível por baixo de todo o pano de fundo usual? Percebemos ou sabemos como verdade aceita?

Às vezes o olhar está tão contrafeito que só enxergamos borrão e achamos que vemos. É como constatar de perto que a senhora idosa, que vende bombons no sinal é, na verdade, feita de rugas, manchas, sinais e suor. Tudo real demais.

A gente assume uma forma de lidar com o vizinho, com o ônibus, com o horário do almoço, com a saída do trabalho. Tudo um grande borrão sem contemplação de nada. Se a gente contemplasse o infinito ou a fresta na calçada com mais afinco talvez nos surpreendêssemos com o que de fato nunca enxergamos. Olhar com olhos de quem realmente deseja ver. Ir para além, estar disposto, olhar e ver. Não é tão fácil para olhares alijados pela falta de atenção, pelo gesto limitado do apenas avistar. A gente se acostuma a não ver. É mais simples. Amanhã tem a vida de novo. 42 notificações pra ler. 13 grupos de whatsapp pra interagir. A gente já olha pra tanta coisa…

Mas a cidade é potencial mutante, mesmo quando nos arrefecemos no tédio, nos ofícios e na inobservância.

Vai ver a gente não quer mesmo é sentir. Vai empurrando tudo pro cérebro dar conta.

*Ayla Andrade é assistente social, cronista, contista e amante do cotidiano. Ela já publicou o livro Mais feliz dos silêncios (Editora Substânsia, 2014) e publicou contos em algumas antologias, entre elas Encontos e desencontos, Antologia Massanova e O cravo roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará.

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About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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