Ilustração: Jéssica Gabrielle Lima

Por Ayla Andrade*

É preciso falar com estranhos
Ela se explicou, na fila,
por que comprava o presunto mais barato:
– nesses dias é preciso aproveitar as ofertas!
eu pensava que seu vestido florido, o cabelo em grampos tortos,
as unhas por fazer e o cheiro de guardado reservava
uma outra conversa.
É preciso falar com estranhos.

A crônica

É preciso falar com estranhos.

… tem isso de andar pela cidade. Tem gente que anda pela cidade porque assim se faz necessário. Tem gente que anda pra pensar. Tem gente que anda pra chegar. Tem gente que anda e para. Tem gente na cidade.

E gente é um troço engraçado. Assim, parado, perdido no tempo, correndo, entre tantas outras gentes, ocupando cada pedaço de cidade à vista.

Gente que a gente desconhece, que se vê em borrões na rua. As caras quase todas iguais não fossem os maneios ou os coloridos das roupas. No Centro de Fortaleza é possível vivenciar essa cena. Talvez no centro de qualquer cidade. Uma sobreposição burlesca de bocas, olhos, mãos, vozes, pernas – pra que tanta perna, meu deus – já dizia Drummond quando perdeu o bonde e a esperança.

Mas eu, que nunca andei de bonde e guardo a esperança pra alguns raros momentos, acredito no breve instante entre mim e o desconhecido: falar com estranhos.

Falar com estranhos me põe, muitas vezes, numa aventura louca entre querer reinventar a verdade ou desabafar uma mentira.

Me sinto tentada.

Estou diante de um estranho e sibilo uma história qualquer sobre mim, sobre hoje, sobre mais tarde.

Não sei se meu ofício de escritora me desanda a cabeça e o peito pra querer inventar sempre novas histórias (ou mentiras, sei lá). Pode ser falta de caráter? Pode ser pela prosa contada? Pode ser timidez? Eu-não-sei. A complacência do estranho com a minha renda de fatos inverossímeis ou meias verdades me intriga, me alimenta e vamos desalinhando o fio das conformidades e convenções que se dá entre estranhos que acabam de se conhecer.

Ás vezes a conversa flui, sai de graça, risos… tudo meia verdade de mentiras bobas – sou manicure e vim aqui nessa loja comprar umas coisinhas – a pessoa pede opinião, fala que tem vizinha manicure… a gente troca informações de cores, marcas, preços… Se eu dissesse apenas a verdade ou se me fechasse em sorriso amarelo que conversa teríamos? – Será que hoje chove? – Nossa que calor? – E essas frases de elevador que são de uma falta de paixão pela vida que me atormentam a alma. Não desejo pra ninguém. Melhor ficar com as histórias criadas na hora onde o ponto de partida é o sorriso mais próximo.

Mas vejam bem, não ando por aí mentindo à toa, como se defendesse a teoria da terra plana. A conversa com o “amigo” recém-feito é mútua. Ambos queremos conversar e muitas vezes os fatos são o menos importante. E penso que se for dada a verdade tal qual pão na chapa é porque já saímos da condição de estranhos.

O ato de falar com estranhos e, então, não sermos mais estranhos é que é a questão.

Diante de todo aquele borrão de rosto, perna, vozes nós somos menos dois estranhos no mundo. Vale a mentira.

No mais, é preciso falar com os estranhos.

*Ayla Andrade é assistente social, cronista, contista e amante do cotidiano. Ela já publicou o livro Mais feliz dos silêncios (Editora Substânsia, 2014) e publicou contos em algumas antologias, entre elas Encontos e desencontos, Antologia Massanova e O cravo roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará. Ela escreve quinzenalmente para o Leituras da Bel.

 

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About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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