Vocês querendo ou não, isso é literatura
Talles Azigon


Crônica do amor-próprio

Outro dia, não muito longe deste em que escrevo, tive uma feliz conversa com um amigo filósofo e escritor sobre esta minha animada disposição para andar pelo mundo só de sutiã, de preferência combinado a alguma saia rodada e esvoaçante, oferecendo braços, ombros e pescoço aos calores da terra e à vista de toda a gente. A tagarelice então alcançou a descrição de uma bem-aventurada noite de amor furtivo que me fez dar conta, sem pingo de vergonha, de como eu me sentia bela e inteira no meio das bolinagens bêbedas à beira-mar e enroscadas nas alças do meu sutiã, razão por que concluí, ao final da conversa, que “eu ando a serviço do meu corpo, pois é a única coisa em que acredito”. Um olhar desatento e luxurioso (como o meu é capaz de ser com muita frequência), veja só, resumiria essa missão sagrada aos anseios da carne dada à lascívia, configurando um terrível desperdício. Imagine você que, hoje, enquanto eu fazia um chá de maracujá com mel, fui absorvida pelos vapores doces que enchiam a cozinha e compreendi, morta de satisfeita, que andar a serviço desta minha morada transcende o gozo favorito e agarra as mãos de todos os outros sentidos, um de cada vez, dois de cada, todos juntos. No café preparado enquanto escuto uma música bonita, nos livros arrumados pelas prateleiras, no pote de sorvete todo meu, no corpo refletido no espelho, nas companhias felinas, no banho quente, na vela aromática, nos minutos dedicados à coisa nenhuma, tudo em minha companhia, eu, que sou a minha melhor e pior amiga e que aprendo a me querer, todos os dias, nas pequenas e grandes coisas que faço pensando – unicamente – em mim. Tempo certamente egoísta, cujo deleite torna a existência um pouco mais suportável e permite entrever, não com perfeição, a ruma de amor que somos capazes de devolver à fonte que vive dentro do peito, às vezes em gota, às vezes feito tromba d’água, mas indo e vindo, como tem de ser. Não sei você lendo, mas eu termino este texto de sorriso, esta crônica do amor-próprio que bem poderia, com muito mais graça, ser a crônica dos sutiãs, hoje colados ao corpo e abraçados aos mamilos audazes, festejando e honrando aqueles queimados pela liberdade das mulheres que, como eu, têm muito que se amar.

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Kah Dantas é cearense, professora e escritora. É autora do livro Boca de Cachorro Louco, tem alguns contos publicados e premiados em concursos literários nacionais e apresenta seus textos nos canais intitulados Conta, Kah!, no blog Orgasmo Santo e aqui no Leituras da Bel.
Instagram: @contakah
Tumblr: https://contakah.tumblr.com/
Blog: Orgasmo Santo

 

 

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Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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