Autoria Arte Propriedade
**Por Talles Azigon

Arte pode ser aquilo que não conseguimos realizar nós mesmos, porque parte de uma experiência de individualização, mesmo quando realizada coletivamente. Talvez seja por isso que facilmente conseguimos atribuir uma unidade para grupos, coletivos – inclusive até para realizadoras anônimas. Sentimos necessidade de nomear, expondo esse processo de individuação que somente este ser poderia fazer desse modo específico. Será que Elena Ferrante teria alcançado sucesso no mercado editorial sem atribuir-se um pseudônimo para autora?

Essa característica também revela a necessidade de sempre atribuirmos autoria para arte que vemos, lemos, escutamos – surgindo como por um impulso em nossa cabeça a questão: quem fez?

‘Quem fez’ não implica necessariamente quem é dona, pois, se formos exigentes, podemos entender que o ato criador é uma confluência, um diálogo com tudo que perpassa aquela ou aquele que cria. Essa influência faz parte do que se é criado. Neste ponto temos um paradoxo excitante. A arte só pode ser criada pela existência e vivência coletiva e, ao mesmo tempo, tornar-se-ia impossível de acontecer daquele modo específico sem o indivíduo.

Pensar assim gera um problema na organização do capitalismo, este não aceita nada que não seja a propriedade individual. Tanto que cria mecanismo para solucionar propriedades que possuem mais de um dono: o CNPJ, a Empresa, a Corporação. E elas têm poder de indivíduo, para abarcar essa concepção de que algo é de um alguém.

Fotografia de Léo Silva para o livro Saral 2, de Talles Azigon

Sendo a arte uma criação que consegue ser ao mesmo tempo individual, uma dimensão facilmente visível, e ao mesmo tempo coletiva, a outra dimensão quase impossível de ser ver e mensurar, desorienta o que conhecemos como propriedade, gerando uma espécie de despropriedade, uma singularidade difícil de resolver, tanto que gera brigas judiciais, políticas e morais. Exemplo é o recente caso da escritora Djamila Ribeiro que reclamou de quem baixava seus livros na internet.

Ora, qualquer pessoa sentindo-se parte da coletividade sentirá, sem culpa alguma, também, dona de uma criação artística ou do conhecimento que se comporta também de modo parecido. Nessa perspectiva, reclamar o acesso invocando a propriedade intelectual, como se a realização artística fosse estritamente individual é um tanto atrasado para o momento histórico em que estamos, mas, ao mesmo tempo, é comum – porque aceitamos o capitalismo que nos nega tudo que foi criado coletivamente, como a agricultura, a pecuária, a modificação da terra…

O que fazer, então? Eis um desafio para qual deveríamos nos dedicar. Problema que cresce a medida que também cresce essa mentira capitalista de que a propriedade privada é um direito divino, é sagrada e inquestionável.

Devo pagar pelo trabalho artístico? Sim, deve. Devo ficar sem acesso ao trabalho artístico quando não posso pagar? Não, não deve. Podemos e precisamos tentar encontrar coletivamente uma solução para este imbróglio. Uma solução não autoritária. Afinal, não acessar o trabalho que também nasce da experiência coletiva significa somente uma coisa: morte. E como morrem as pessoas na nossa lógica atual de não acesso em que estamos.

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Talles Azigon
Poeta, editor, criador da Livro Livre Curió – Biblioteca Comunitária. Foi o organizador do livro Ruma, poemas de Saraus. Autor de quatro livros, entre eles o projeto Saral. @tallesazigon

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Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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