Reprodução da coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 20/11/2016 do O POVO.

Uso problemático de droga é consequência da exclusão social

A Pesquisa Nacional sobre o Crack, encomendada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), chegou a uma conclusão que confronta o senso comum: não é o uso da droga que produz a exclusão social, mas é a exclusão que leva ao “consumo problemático”. Ou seja, é um processo anterior – a história de vida da pessoa – que a leva ao uso descontrolado de drogas. Segundo o estudo, o Brasil tem 370 mil consumidores regulares de crack nas capitais, correspondendo a 0,8% da população adulta. Dos consumidores, cerca de 80% são homens, negros, de baixa escolaridade e renda, com média de 30 anos de idade.

O coordenador da pesquisa, Jessé de Souza, professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, diz que reconhecer o elo entre exclusão social e o uso do crack é fundamental para “desenhar as políticas e formar os operadores da linha de frente do cuidado às pessoas que têm problemas com as drogas”. Entre os “marcadores de exclusão social”, destacados pela pesquisa, estão a pobreza, a baixa escolaridade e a cor da pele, “sugerindo uma trajetória de marginalização que precede o uso de drogas”. Somando-se outros problemas, em consequência do seu uso, como a falta de moradia, desemprego ou trabalho precário. Portanto, para Jessé, nenhuma solução será efetiva se não forem levadas em conta essas variáveis.

Para Leon de Souza Lobo Garcia, diretor de Articulação e Projetos da Senad, quando, em 2010, o problema dos entorpecentes começou a ser debatido com mais intensidade, resolveu-se dar destaque ao crack. (Para ele, o álcool, uma droga lícita, é a que tem maior impacto na saúde pública). O crack, afirma Lobo Garcia, ocupou o “centro do cenário”, tanto dos discursos políticos como da mídia. Ao uso desse derivado da cocaína, foi atribuída a “responsabilidade por crimes violentos e pela suposta degradação da juventude brasileira”.

Se o resultado da pesquisa surpreendeu – como destacaram alguns meios quando de sua publicação, apenas confirmou a tese defendida no livro “Um preço muito alto – A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas”, escrito pelo neurocientista americano, Carl Hart, professor dos departamentos de Psicologia e Psiquiatria na Universidade de Columbia, Estados Unidos. O motivo de ele ter escolhido estudar as drogas ilegais em sua carreira universitária é explicado pela sua própria vida. Negro, de família pobre e problemática, Hart foi criado nos guetos de Miami: usou drogas, vendeu-as e cometeu vários outros delitos quando era adolescente.

Foi salvo de destino igual de amigos e parentes – prisão ou morte – quando resolveu dedicar-se aos estudos. A sua própria experiência mostrou – o que depois foi confirmado por seus estudos – que o vício não pode ser explicado fora do contexto em que é consumida a droga, pois são vários os fatos que levam à dependência, entre eles a pobreza e a exclusão social. Atribuir todo “comportamento condenável” ao uso de drogas é um erro que leva ao aumento do preconceito contra negros e pobres, diz ele.

Hart afirma que a “guerra contra as drogas”, na presidência de George Bush, foi uma “investida contra os negros”. Ele anota que as leis mais duras sobre o crack no período não levaram à prisão “nem um só branco” em Los Angeles, cidade com cerca de quatro milhões de habitantes. Da mesma forma, no Brasil, a política de repressão policial tem endereço certo. O estudo da Fiocruz assinala que um consumidor de classe média talvez nunca experimente um episódio de violência. “De maneira geral, são os pobres que experimentam a violência ligada ao consumo e tráfico de drogas no país”.

Então, em pelo menos em uma coisa o Brasil se parece com os Estados Unidos: no tratamento que dá aos pobres.

NOTAS

Álcool
Os pesquisadores consideraram “preocupante” o número de consumidores regulares de crack, equivalente a 0,8% da população adulta. No entanto, calculam que a dependência do álcool é de oito a 15 vezes maior.

Leitura
Não faria mal nenhum se governos municipais, estaduais e federal se dedicassem a ler e levar em conta a pesquisa da Fiocruz.

Créditos
Em meu blog, dois comentários sobre o livro de Carl Hart: https://goo.gl/vYUryj e https://goo.gl/9dOip4; Fiocruz: https://goo.gl/A1GmUQ (texto) e https://goo.gl/CnhDsn (pesquisa).

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