Em verdade o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente desigual e diverso. Dificilmente o julgaríamos de maneira decidida e uniforme.

Montaigne

[Ensaios. Trad., prefácio e notas linguísticas interprativas de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 76]

Michel de Montaigne, nascido em 1533 e falecido em 1592, é um dos escritores franceses mais célebres e, ainda hoje, mais admirados. Deve-se a ele a invenção do ensaio, gênero literário dos mais influentes ao longo da história da literatura, caracterizado pela informalidade e o intimismo.   

A primeira edição dos Ensaios, de Montaigne, data de 1580. No texto introdutório à obra, adverte o autor: “Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito. Prefiro, porém, que me vejam na minha simplicidade natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto”, concluindo, a seguir: “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente para que não empregues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância” (p. 74). 

Apesar da advertência, Ensaios se tornaria um dos livros mais lidos a partir de então, mereccendo sucessivas edições séculos afora, sendo traduzido em várias línguas. Embora Montaigne afirme ser ele próprio a matéria do livro, o autor trata dos mais diversos assuntos que se possa imaginar, sempre com profunda percuciência. 

Há trechos dos Ensaios aos quais sempre retorno, descobrindo, a cada vez, novos horizontes a partir das reflexões propostas pelo autor. Uma das passagens que muito me tem levado a refletir, e à qual sempre retorno, é o Capítulo XIV do Livro Primeiro, intitulado: “O bem e o mal só o são, as mais das vezes, pela idéia que deles temos”.

Montaigne inicia a reflexão sobre o tema afirmando: “Os homens, diz antigo ditado grego, atormentam-se com a idéia que têm das coisas e não com as coisas em si”.

E, mais adiante: “Se as coisas que tememos tivessem um caráter próprio, a todos se imporiam de igual maneira, produzindo idênticas consequências. Todos os homens são, efetivamente, da mesma espécie e, com pequenas diferenças, providos de órgãos semelhantes, instrumentos de concepção e julgamento. A diversidade de opiniões acerca das coisas mostra claramente que atuam sobre nós segundo um dado estado de espírito” (p. 94). 

Disso infere-se que o que importa não é, exatamente, o que nos acontece, mas a interpretação, a cor que atribuímos ao acontecimento: “Os efeitos externos tiram cor e sabor de nossa constituição interna, como as roupas que usamos nos aquecem não com seu calor próprio, mas com o nosso, que conservam e desenvolvem. Se com elas cobríssemos um corpo frio, inverso seria o resultado. Desse modo conservam-se a neve e o gelo. Todas as coisas dependem da maneira por que são encaradas: o estudo é motivo de tormento para o preguiçoso; o beberrão sofre sem vinho; a frugalidade é um suplício para o comilão; o exercício uma tortura para o delicado ocioso etc. As coisas não são nem dolorosas nem difíceis em si. Para julgar de sua elevação e grandeza é necessário uma alma com essas qualidades, sem o que lhes atribuiríamos nossos prórpios defeitos. Um remo é reto, e no entanto quando mergulha na água parece curvo. Não basta ver a coisa, importa como vê-la” (p. 103). 

A felicidade seria, segundo a concepção montaigniana,  uma questão de foro íntimo, motivo pelo qual afirma: “Estamos bem ou mal neste mundo segundo o que pensamos: contente está quem se acredita contente e não aquele que os outros imaginam contente. Nossa crença é que faz seja ou não seja real a felicidade” (p.103).

A conclusão inevitável a que somos levados é que, em certa medida, somos artífices do nosso próprio destino, pois o que o determina é, em última instância, muito mais que as experiências que a vida nos oferece, a forma como reagimos a elas: “Pois o destino” dirá Montaigne, “apenas suscita o incidente; a nós é que cabe determinar a qualidade de seus efeitos” (p. 94).

Michel de Montaigne inscreve-se, para mim, na galeria dos Mestres aos quais sempre retorno em busca de conforto e lenitivo cada vez que a vida me coloca situações para as quais nem sempre encontro uma saída ou explicação satisfatória.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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