E São Francisco, esperando no Senhor Jesus Cristo que domina os espíritos de todo ser vivo, desprotegido de escudo ou capacete, mas munindo-se com o sinal da santa cruz, saiu pela porta com um companheiro, lançando toda a sua confiança no Senhor, que faz aquele que nele crê andar sem nenhuma lesão sobre a serpente e a víbora e calcar aos pés não só o lobo, mas até mesmo o leão e o dragão (cf. Sl 90,13). E assim Francisco, o fidelíssimo cavaleiro de Cristo, não cingido de couraça nem com espada, não levando às costas arco nem arma bélica, mas munido com o escudo da santíssima fé e com o sinal-da-cruz, começou a percorrer com constância o caminho [que era] duvidoso para os outros. E, estando muitos a observar dos lugares a que haviam subido, eis que aquele terrível lobo correu contra São Francisco com a boca totalmente aberta. Contra ele São Francisco interpôs o sinal-da-cruz e, pela virtude divina, deteve o lobo longe tanto de si quanto do companheiro, reteve-lhe a corrida e fechou-lhe a truculenta boca aberta. E finalmente chamando-o, disse-lhe: “Vem cá, irmão lobo, e da parte de Cristo te ordeno que não faças mal nem a mim nem a qualquer outro”.

[Atos do bem-aventurado Francisco e de seus companheiros. Cap. XXIII – O lobo levado pelo bem-aventurado Francisco a grande mansidão. Em: Fontes Franciscanas e Clarianas. Apresentação Sergio M. Dal Moro; tradução Celso Márcio Teixeira… [et. al.]. 2ª. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008,  p. 1170].   

Um dos episódios mais conhecidos da vida de São Francisco é o do lobo de Gúbio. Mais de uma fonte franciscana relatam o fato. Contam os biógrafos do santo que apareceu nos arredores da cidade de Gúbio um lobo que, em pouco tempo, aterrorizou toda cidade, devido à sua voracidade, devorando não só animais, mas, inclusive, homens e mulheres. Apesar das advertências dos habitantes, São Francisco resolveu encarar a fera.

Ao se aproximar do lobo, ordenou-lhe, em nome de Cristo, que não fizesse nenhum mal aos habitantes da cidade nem, tampouco, aos animais irracionais. Em contrapartida, prometeu-lhe que ninguém lhe faria qualquer mal. Disse, ainda, que, enquanto o lobo vivesse, lhe seria dado alimento pelos homens daquela cidade. Ditas essas coisas, São Francisco aproximou-se do lobo e lhe estendeu a mão. O lobo, por sua vez, ergueu a pata dianteira e colocou-a mansamente sobre a mão de São Francisco. Ante tal gesto, o santo entrou na cidade – pois seu encontro inicial com o lobo acontecera fora – e pediu aos presentes a garantia de que, doravante, alimentariam o lobo, afirmando que se colocava como fiador de que aquele observaria o pacto de paz, no que todos aquiesceram prontamente. Depois disso, São Francisco se dirige ao lobo, conclamando-o a entrar com ele na cidade. Nos “Atos do bem-aventurado Francisco e seus companheiros”, assim é narrado o momento em que o pacto é selado:

“Então, todos os [que estavam] ali reunidos, com forte clamor, prometeram alimentar o lobo continuamente; e São Francisco, diante de todos, disse ao st_francis-wolf4lobo: ‘E tu, irmão lobo, prometes observar o pacto com eles, a saber, de não lesar nem animal nem pessoa alguma?’ E o lobo, ajoelhando-se, com inclinação da cabeça e com gestos do corpo, e abanando a cauda e as orelhas, demonstrou a todos de maneira evidente que observaria os pactos prometidos”(p. 1172).

Quando se lê um relato como esse, é natural que se pense que São Francisco só conseguiu apaziguar o lobo porque era santo. Penso, porém, que, para entender o fato, deve-se assumir uma outra perspectiva de raciocínio. São Francisco conseguiu o feito não porque fosse santo. A santidade, na verdade, viria depois, como consequência. Ele conseguiu realizar o feito julgado por todos impossível por proceder de forma diferente. Foi tal forma de proceder que o levaria, depois, à santidade. A dica está na frase do relato: “…munido com o escudo da santíssima fé e com o sinal-da-cruz, começou a percorrer com constância o caminho [que era] duvidoso para os outros” (p. 1170). É isso o que caracteriza a santidade: a capacidade de, devido a uma fé inabalável, ousar percorrer com determinação um caminho que à maioria se afigura dúbio.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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