Recebi, esta manhã, um texto escrito pelo professor Carlo Tursi, o qual me fora enviado por Jean dos Anjos, um amigo e leitor deste blog. Antecedendo o texto, vinha uma mensagem do próprio autor encaminhando-o aos amigos e lhes pedindo que o divulgassem. Três motivos me fizeram logo sentir o desejo de divulgá-lo. Primeiro, porque conheço o Carlos desde que fui professor do ICRE, onde ele também lecionava. Sempre nutrei por ele uma grande admiração – e isso faço questão de afirmar sempre que se faz oportuno – seja por sua coragem em dizer o que pensa, seja pela vasta cultura e erudição de que é detentor, sobretudo nos campos filosófico e teológico. Segundo, porque já tinha ouvido diversos comentários de outras fontes sobre o que vem acontecendo na recém-fundada Faculdade Católica de Fortaleza, o que muito tenho lamentado. Terceiro, pelo motivo que influiu diretamente sobre a sua decisão de escrever o texto: a demissão do prof. Lucho, uma outra pessoa por quem tenho igualmente enorme apreço e admiração.

Pois bem, depois que li o texto, entrei em contato diretamente com o Carlos, por e-mail, manifestando minha disponibilidade e interesse em divulgar o seu texto. Uma vez que eu gostaria também de anexar a mensagem que ele havia remetido aos amigos junto com o texto, indaguei-lhe se autorizava que eu divulgasse um e outro. Poucos minutos depois eu já recebia como resposta a seguinte mensagem: “Meu caro Vasco, publique à vontade! Guardamos silêncio por tempo demasiado. O clero faz o que faz, contando com a nossa resignação. Portanto, “gritemos a verdade pelos telhados”!  Bom Natal, Carlo Tursi”. Segue, abaixo, o texto.

Faculdade Católica de Fortaleza: Réquiem para uma Teologia engajada e plural

C a r l o   T u r s i

Há avanços que se revelam retrocessos. Parece ser esse o caso da recém-criada (2009) Faculdade Católica de Fortaleza, ligada à Arquidiocese, que veio a substituir o Instituto Teológico-Pastoral do Ceará (ITEP) e o Instituto de Ciências Religiosas (ICRE), fundindo-os em uma só entidade de ensino superior, autorizada pelo MEC, oferecendo cursos de bacharelado em Teologia Católica e de licenciatura em Filosofia. À primeira vista, trata-se de uma promoção incontestável: Quem concluir qualquer um dos dois cursos, hoje, sai com um diploma de validade nacional na mão. Contudo, olhando mais de perto o processo de criação da nova Faculdade, assustamo-nos com o alto preço desta “conquista”:  demissões em massa de professores leigos engajados e conceituados, em procedimentos administrativos de pouca lisura e nenhuma honradez, e sua substituição por clérigos que, embora com titulação acadêmica, passam a administrar burocraticamente um ensino teológico insípido e obsoleto, de quase nenhuma relevância para as realidades seculares e de uma uniformidade doutrinal enfadonha;  dramática redução do número de estudantes no turno da noite;  oferta diminuta de disciplinas da grade;  estabelecimento da censura eclesiástica episcopal, além da introdução – por parte do arcebispo – de um juramento de fidelidade à doutrina católica a ser prestado, publicamente, por todos os docentes da área teológica. Verifiquemos estas perdas mais detalhadamente:

“Toda unanimidade é estúpida”. O conhecido ditado não impedira o prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, o então cardeal Joseph Ratzinger, de impor em 1998, através da Carta Apostólica “Ad tuendam fidem” (“Para defender a fé”) do papa João Paulo II, aos teólogos a necessidade de prestar uma profissão pública de fé (professio fidei) e um juramento de fidelidade (iusiurandum fidelitatis) à doutrina católica. O objetivo expresso da medida era uma homologação do ensino teológico, ou seja, uma uniformização do discurso e da pesquisa, sacrificando o saudável pluralismo de correntes e escolas teológicas e as instigantes controvérsias acerca de determinados pontos da doutrina católica, tão necessárias em um ambiente verdadeiramente acadêmico, a um pretenso “combate a heresias”.

O atual arcebispo de Fortaleza, imbuído de um espírito de obediência exemplar, tratou logo de aplicar as prescrições romanas, inicialmente ao curso diurno (antigo ITEP) que se propõe formar os futuros sacerdotes. No início de 2010, já criada a nova Faculdade, a implementação do juramento, junto com uma censura episcopal sobre programas, ementas e indicações bibliográficas das matérias a serem lecionadas, alcançou também o curso noturno que atende o laicato católico. Previsivelmente, a quase totalidade dos docentes (padres e leigos) prestou tal juramento sem pestanejar – um claro sinal de sua ortodoxia e obediência? Ou apenas de um pragmatismo esperto? O pobre autor deste artigo, consciente de suas discordâncias pessoais com alguns pontos da doutrina oficial do Magistério Eclesiástico, preferiu não jurar, lembrando-se também da proibição de qualquer juramento expressa por Jesus (Mt 5,34) – e foi prontamente excluído, até do programa de extensão da Faculdade!

Mais sério, porém, foi o doloroso processo de “enxugamento do quadro docente” da Faculdade que se traduziu em demissões sumárias de professores e funcionários de uma longa folha de serviços prestados ao antigo Instituto de Ciências Religiosas (ICRE) e à própria Arquidiocese, pessoas e profissionais brilhantes e dedicadas que foram dispensadas de forma fria, sem agradecimento, sem reconhecimento, sem lamento. As demissões costumavam a ser efetivadas no fim do ano/início das férias (fora do prazo legal, portanto, o que acarretava uma multa para a Faculdade!), só para evitar qualquer comoção ou manifestação de solidariedade por parte dos estudantes ou colegas. Aqui não interessa o motivo alegado para a demissão – se eram padres casados ou leigos sem suficiente titulação acadêmica: o ponto é de que ninguém, de notório saber e de reconhecida idoneidade, merece este tipo de “tratamento”, ainda por cima de expoentes renomados do clero desta Igreja que se auto-proclama, aos quatro ventos, “perita em humanidade”!

Alguns anos atrás, o ICRE já havia perdido muitos estudantes quando a validade do curso de Licenciatura em Ciência da Religião foi suspensa pelo Conselho de Educação do Ceará. Agora, a “sangria” de alunos no curso noturno se agrava ainda mais, dado o afastamento, justamente, dos docentes de maior originalidade na releitura da tradição bíblico-teológica e de uma clareza e coragem superiores ao enunciar os grandes desafios pastorais para a ação dos cristãos no mundo de hoje. Os professores que ora os substituem – coincidentemente, todos clérigos (sic) – e que, a julgar pela sua titulação acadêmica, deveriam estar mais bem preparados, se tornam, no entanto, alvos de ásperas críticas por parte do alunato: veiculação de conteúdos obsoletos na área de exegese e hermenêutica bíblicas, abordagem apologética e ingênua dos assuntos eclesiásticos, linguagem enfadonha, falta de didática, descumprimento do horário de aula… – enfim, as queixas são “legião”. Se a formação do laicato cristão for mesmo – como sempre trombeteado nas assembléias pastorais – “prioridade” para a Igreja-Povo-de-Deus, como permitir que pessoas adultas e inteligentes sejam, na academia, blindadas contra tudo o que há de mais avançado, crítico, lúcido e libertador na pesquisa bíblico-teológica e devam se contentar com “o leite das crianças”, alimento racional/espiritual pouco sólido e inadequado à sua idade psicológica e capacidade intelectual?

Permito-me recomendar aos diretores da Faculdade Católica de Fortaleza a leitura atenta do livro “Outro cristianismo é possível: A fé em linguagem moderna”, de um sacerdote jesuíta belga, Roger Lenaers, na intenção de os fazer refletir sobre o projeto maior de uma instrução cristã para a nossa época. Solicito especial atenção para o episódio bíblico que inaugura esta obra: É o sonho do rei Nabucodonosor (Dn 2,28b-35) onde uma estátua esplêndida e imóvel desmorona, repentinamente, quando atingida por uma pedra. Pois, não adianta invocar o “passado glorioso do Seminário da Prainha” e algumas figuras históricas imponentes que passaram por lá – toda a venerabilidade da tradição se desmancha quando o ensino se torna obsoleto e se perde em verdades abstratas e genéricas, descomprometidas com o real. Sendo assim, devemos – cristãos e cristãs livres e conscientes de nossa missão libertadora no mundo de hoje – “beber em outra fonte”. Que Deus nos ajude!

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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