Hoje em dia, tanto entre católicos como entre os não-católicos de todo o mundo, acredita-se que Maria, a mãe de Jesus, não pode servir como uma fonte de inspiração para a mulher moderna. Definida e interpretada por homens celibatários, a tradicional mariologia tem pouco a dizer a respeito dos desafios e das aspirações das mulheres no mundo atual. As homilias dos dias de festas marianas feitas pelos sacerdotes tendem mais a alienar e a frustrar as mulheres da comunidade do que a inspirá-las. Não surpreende que muitas optem por ignorar totalmente Maria, dando preferência a figuras bíblicas como as irmãs Marta e Maria, ou Maria Madalena, conhecida como “a apóstola dos apóstolos” na Igreja primitiva, por ter sido ela a primeira a testemunhar a Ressurreição.

Tina Beattie

[Beattie, Tina. Redescobrindo Maria a partir dos Evangelhos. Tradução Silvio Neves Ferreira. – 3ª. ed. – São Paulo: Paulinas, 2007, p. 3. – (Coleção Maria em nossa vida).] 

Gostaria de comentar hoje um livro que, diria, foge um pouco ao padrão dos livros que habitualmente tratam do tema mariologia. O livro intitula-se Redescobrindo Maria a partir dos Evangelhos. A autora, Tina Beattie, nasceu em 1955, em Lusaka, e viveu a maior parte de sua vida na África: Zâmbia, Quênia e Zimbábue. No Zimbábue, publicou dois livros de ficção para crianças que foram recomendados para as escolas locais. Converteu-se ao catolicismo romano em 1987. Depois de se mudar para a Inglaterra, estudou Teologia na Universidade de Bristol, e defendeu tese de doutorado sobre mariologia e diferença sexual no catolicismo contemporâneo. É casada e tem três filhos.

O diferencial do livro de Tina Beatttie no amplo universo dos estudos mariológicos ancora-se no enfoque que a autora dá à história de Maria. Partindo de textos bíblicos, tece reflexões sobre diversos episódios da vida da mãe do Salvador sob a ótica do olhar feminino e, por que não dizer, feminista. De forma sempre ponderada e valendo-se de argumentos coerentes e bem estruturados, Tina toca em temas muitas vezes de difícil abordagem, quando se intenta analisa-los sob a perspectiva de uma teologia que tenha como um de seus horizontes o respeito aos direitos femininos, coisa nem sempre presente numa Igreja que prima pelo patriarcalismo.

Tina Beattie

É o caso, por exemplo, do dogma da virgindade de Maria, que ela trata sob diversos ângulos. A grande questão com que esse dogma confronta as mulheres é:  deve-se aceitar ou recusar o dogma? Em caso negativo, não há muito o que discutir. Mas, na hipótese de optar pela concordância com o dogma, como encontrar os elementos necessários de forma a evitar que essa aquiescência não se confunda com uma concordância passiva que facultaria o seu uso como forma de dominação, por exemplo, da sexualidade feminina? Essa é a questão que, embora não formulada exatamente nestes termos, a autora tenta responder no capítulo sete.    

Considero Redescobrindo Maria a partir dos Evangelhos um dos melhores livros escritos sobre mariologia nos últimos anos, dentre os que conheço. É, por isso, uma leitura absolutamente recomendável a quantos se interessam pela mariologia e pelos caminhos que podem ser desbravados por essa área de estudo ao longo do século XXI.  Aproveito para citar um trecho da conclusão do livro, intitulada Em direção a um fim e a um novo começo, onde Tina Beattie  escreve, num tom que soa como um desafio especialmente dirigido às mulheres:

Na arte ortodoxa, existem ícones que mostram a sonolência ou adormecimento da Virgem Maria. Nas pinturas da infância de Jesus, o inocente filho de Maria é embalado nos braços de Cristo, enquanto este é embalado nos braços dela. Esta é uma bela imagem que completa o ciclo de vida de Maria e aperfeiçoa a imagem do amor maternal de Deus. Mas a chegada do Reino maternal é um longo e doloroso processo de parto. Podemos nos desesperar e dizer que nada na história da Igreja nos dá esperança de que essa seja uma instituição capaz de partejar a humanidade restaurada das mulheres. Ou podemos nos considerar entre os poucos privilegiados aos quais foi permitido estar presentes ao nascimento em si mesmo, quando, depois de aproximadamente dois mil anos de gestação, a voz das mulheres está sendo ouvida nos sagrados recintos do mundo teológico. Somos chamados a nos tornar parteiras umas das outras e das nossas filhas. Ousaremos aceitar o desafio, ou permaneceremos em silêncio, com nossas faces nas sombras e nossa humanidade para sempre alienada ao reino das trevas e da passividade? Creio que é chegado o momento de uma luta premente mas estimulante para as mulheres da Igreja, como última etapa no trabalho de parto, quando a desorientação e a dor são intensas e o corpo da mãe é dilatado ao máximo, mas o nascimento é iminente (p. 146).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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