Que mulher era essa, que viveu sessenta e sete anos de extrema atividade e energia, apesar de doenças e angústias que teriam levado a maioria das pessoas a não sair da cama; que foi vista, pobremente vestida, pelas estradas da Espanha, montada numa mula, ou num carro de campônio, sob um calor ardente ou um frio entorpecedor; que raramente tinha dinheiro que chegasse para pagar uma refeição decente e que, apesar disso, fundou dezessete conventos e vários mosteiros; que dormia no soalho nu, como qualquer pastor, e no entanto expulsou uma princesa, falou de igual para igual com uma duquesa e em certa ocasião repreendeu severamente um rei? Para que princípio se há de apelar para explicar as levitações e outros fenômenos estranhos da vida de uma pessoa tão ricamente dotada das qualidades humanas mais comuns? Porque Teresa tinha formosura, encanto, gênio literário de alta qualidade (embora não cultivado), uma habilidade administrativa sem par, humor, ternura e senso-comum; a decisão e intrepidez de um grande soldado, juntamente com a paciente obediência e a humildade de um santo. Com pequena instrução sistemática, ela sabia de neurastenia – por exemplo – mais que Charcot três séculos depois; e atingiu tal potência e lucidez como pensadora, que o próprio Leibniz reconheceu a sua dívida para com ela, e os católicos a veneram quase como Doutora, juntamente com São Tomás, Santo Agostinho e outros cérebros mais poderosos da humanidade. Qual a fonte interior de tão vitais realizações, a que serviu de meio um corpo enfermiço, débil e no entanto incorruptível?

William Walsh

[Walsh, William. Teresa de Ávila. Tradução de Henrique B. Ruas e José M. Almeida. Lisboa: Editorial Aster, s/d, p. 7].

Essa mulher extraordinária de quem fala William Walsh, no trecho acima, é Santa Teresa de Jesus, mais conhecida por Santa Teresa D`Ávila, devido à cidade onde nasceu, na Espanha, no alvorecer da manhã de 28 de março de 1515. Eu queria ter hoje o grande talento do mais inspirado poeta para dedicar-lhe um poema que fizesse jus à sua grandeza, ou ser um escritor da mais alta estirpe para dedicar-lhe a mais bela crônica, mas sou apenas um aprendiz que, em toscas palavras, tenta dizer do grande amor que sente por esta apaixonante mulher que, passados quinhentos anos de seu nascimento, ainda arrebata corações.

Porque Santa Teresa D`Ávila é isso mesmo, uma arrebatadora de corações. Ninguém consegue estabelecer com ela uma relação, por mínima que seja, sem que se sinta de imediato atraído pelo fogo ardente de suas palavras, quer seja por intermédio da leitura das suas grandes obras, como o “Livro da Vida” ou “O Castelo Interior”, quer seja pelo deleite experimentado à leitura de seus belos poemas, todos eles inflamados de amor a Deus e ao seu filho Jesus Cristo, a quem ela tomou por Mestre e esposo.

Mas há, ainda, uma terceira via de acesso à santa carmelita, que é a leitura de suas cartas, via essa que venho cultivando há algum tempo. Há muito tenho dedicado a primeira hora do meu dia a uma conversa com Santa Teresa, mediada por suas cartas. E quando digo conversa, é conversa mesmo, diálogo. É como se eu falasse, expusesse minhas questões, minhas dúvidas, minhas angústias, mas também minhas alegrias e conquistas e recebesse dela opiniões, sugestões, conselhos, dicas, que me vêm sempre por intermédio de uma ou outra das 446 cartas publicadas na edição de suas Obras Completas.

Este tem sido um exercício diário que me tem levado a grandes descobertas interiores. A cada dia sou surpreendido com um novo acontecimento, um novo fato, um novo insight que me tem levado, em diversas ocasiões, a rever conceitos, pontos de vista, perspectivas, atitudes, valores. É uma forma de oração por meio da qual tenho me sentido sempre conduzido pela Mestra, perdoe-me ela por minha tamanha pretensão, mas é assim que sinto.

Foi ela mesma quem o disse, está lá, com todas as letras, no Capítulo 8 do Livro da Vida: “Para mim, a oração mental não é senão tratar de amizade – estando muitas vezes tratando a sós – com quem sabemos que nos ama” (Teresa de Jesus. Obras Completas. Texto estabelecido por Fr. Tomas Alvarez, O.C.D. Direção Pe. Gabriel C. Galache, SJ. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e outros. – São Paulo: Edições Carmelitanas: Edições Loyola, 1995,p. 63).

Pois se assim é, considero-a uma amiga, amiga íntima, dessas pra quem a gente se abre totalmente e não tem segredos. Quando converso com Santa Teresa, tenho sempre uma conversa franca e aberta. Não escondo nada. Por que haveria de esconder? Eu estaria correndo um grande risco faltando com a sinceridade. Então, como tem acontecido inúmeras vezes, deixo a vergonha de lado, e falo. Digo mesmo tudo que tenho para dizer. E ela me escuta. Eu sei que ela me escuta – perdoe-me, Mestra, mais uma vez, minha desmedida pretensão, tá? – mas quem tem me dado a garantia dessa escuta é ela própria, que me responde maravilhosamente nas cartas que abro aleatoriamente quando preciso saber o que ela tem para me dizer sobre determinado assunto.

Fica aqui, pois, esse pequeno texto, essas poucas palavras, escritas toscamente, mas com um imenso amor, como uma expressão da minha gratidão e como uma lembrancinha no aniversário dos seus quinhentos anos de nascimento. São cinco séculos ao longo dos quais Santa Teresa D`Ávila tem exercido a mais pura mestria conduzindo ovelhas desgarradas como eu de volta ao itinerário maior, a devoção a Deus, ao seu Filho e nosso Mestre Jesus Cristo e ao Divino Espírito Santo. Sua bênção, queridíssima Mestra.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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