O clima do vale, abrigado dos ventos, é quente durante o dia e frio à noite. Mas por volta do meio-dia é frequente ouvir o ruído das avalanches do monte Karakal. Os costumes e o clima de Shangri-La parecem estar na origem de um estranho fenômeno de prolongação anormal da duração da vida, acompanhada de um envelhecimento tardio.

Alberto Manguel e Gianni Guadalupi

[Manguel, Alberto & Guadalupi, Gianni. Dicionário de lugares imaginários. 1ª reimpressão. Ilustrações de Graham Greenfield e Eric Beddows; mapas e plantas de James Cook; tradução de Pedro Maia Soares. – São Paulo: Companhia das Letras, 2005, verbete: Shangri-La, p. 396.]

Um Dicionário de lugares imaginários. Que título atraente o daquele livro, exposto na prateleira da livraria, apenas aguardando que o visse e levasse comigo. Ao abri-lo, não precisei ir além da primeira página do prefácio, escrito por um de seus autores, Alberto Manguel, para que já me decidisse pela aquisição. Escreveu o autor:

No inverno de 1977, Gianni Guadalupi, com quem eu fizera uma antologia de milagres verdadeiros e falsos para um editor de Parma, sugeriu que

Lamaseria de Shangri-La, desenho publicado na p. 396 do Dicionário de lugares imaginários

preparássemos um guia de viagem para lugares da literatura – ele pensava então numa visita acompanhada de Selene, a cidade-vampiro de Paul Féval. Entusiasmados com a ideia, não demoramos em compilar uma lista de outros lugares que gostaríamos de visitar: Shangri-La, Oz e Ruritânia vieram logo à mente.

Adorei ver ali nomes de lugares familiares, um dos quais durante mais de uma década fora o foco do meu mais acalentado sonho: Shangri-la. Mas a frase que me fisgaria mesmo eu a encontraria no parágrafo seguinte. Prossegue o autor:

Concordamos que nossa abordagem teria de ser cuidadosamente equilibrada entre o prático e o fantástico. Tomaríamos por suposto que a ficção era realidade e trataríamos os textos escolhidos com a mesma seriedade com que se encaram os relatos de um explorador ou cronista, utilizando apenas as informações fornecidas pela fonte original, sem “invenções” de nossa parte. Incluiríamos comentários pessoais somente se a descrição os exigisse, e apenas na medida em que fossem esperados de um guia normal. Com essa intenção, baseamos o projeto de nosso livro em um dicionário geográfico do século XIX – relíquia de uma época em que viajar pelo mundo real era ainda uma aventura apaixonante.

Talvez quem tenha alguma familiaridade com os textos que tenho postado no Sincronicidade possam adivinhar a frase que “me fisgou”. Ela está no começo da segunda linha da citação: Tomaríamos por suposto que a ficção era realidade… Que proposta encantadora! Fui para casa feliz da vida com o livro. Desde então, folheando aleatoriamente suas páginas, tenho visitado e revisitado, descoberto e redescoberto lugares. Se tenho descoberto lugares distantes, igualmente tenho me defrontado com outros mais próximos, como a Pasárgada, de Manuel Bandeira, e o Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Esse é um plus da tradução brasileira do Dicionário de lugares imaginários. O tradutor, Pedro Maia Soares, teve a genial ideia de acrescentar-lhe alguns verbetes sobre lugares imaginários das literaturas brasileira e portuguesa, o que lhe granjeou, inclusive, um agradecimento dos autores.

Na Nota à edição revista, que Alberto Manguel escreveu para o dicionário, ele conta uma história curiosa, hilariante e… surpreendente:

Em 1923, um grupo de jovens sapadores estava fazendo um levantamento topográfico de uma parte inacessível da África. Ao final de um dia duro de trabalho sob o sol tropical, faltava uma única montanha para ser representada na prancheta topográfica. Os homens estavam ansiosos para regressar à base; um deles percebeu que se tratava de uma colina que poderia ser facilmente desenhada, com os olhos da fé e um pouco de imaginação. A sugestão foi aprovada. Os jovens inventivos recortaram a imagem de um elefante de uma revista, fixaram-na em seu mapa e desenharam ao redor dela, criando assim a silhueta do morro. A colina com forma de elefante ainda pode ser vista atualmente no canto noroeste da folha 17 de Africa (Gold Cost), nas British Map Series, na escala 1:62.500.

Adorei ler o relato de AlbertoManguel. Essa imbricação entre o real e o imaginário, em que um se metamorfoseia no outro, não se sabendo mais, afinal, o que pertence a um registro a ao outro, me fascina. Não se trata, ao contrário do que muita gente afirma, de uma insatisfação experimentada por algumas pessoas com o real e que as levaria a projetar no imaginário construções fantasiosas e quiméricas, como se aquele não bastasse. O fato, que a muitos passa despercebido, é que o real é muito mais fantástico e extraordinário do que tudo o que se possa criar na imaginação, e o que muitas vezes se tinha como algo passível de realização apenas no registro imaginário, de repente se torna factível, real, palpável mesmo.

Nessas ocasiões, nos quedamos surpresos, e, estupefatos, exclamamos com nossos botões: Meu Deus!, tudo é possível! Aliás, não me parece mera casualidade o fato da gênese do Dicionário de lugares imaginários estar ancorada numa publicação que trata de milagres.

Para concluir, uma perguntinha a você que me acompanhou até aqui na leitura deste texto: Você já esteve em um lugar imaginário? Pois eu estive, e a prova está aqui, logo abaixo:

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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