Se não puderes perseverar por amor, obriga-te com santo zelo e passa pela porta estreita da contemplação, porque Deus dá a graça do saber àquele que se atreve a perseverar. Considera que Deus te fez unicamente para a oração. Ele não exige outra coisa de ti, a não ser que O adores em espírito e verdade. Assim, tua habilidade nesta arte será treinada, na qual um dia serás mestre.
Francisco de Osuna
[Osuna, Francisco de. Terceiro Abecedário da vida espiritual. 3ª. edição (revista e ampliada). Tradução de Adolfo Temme. Petrópolis, RJ: Família Franciscana do Brasil (FFB), 2007, p. 8.]
Aqueles que, como Lúcia Cherem, uma das mais sensíveis leitoras de Clarice Lispector, frequentaram em Paris os seminários de Hélène Cixous – a mais importante leitora francesa de Clarice – puderam entender, um pouco melhor, o que realmente se passa. Nos anos 1980, Lúcia participou dos círculos de leitura de Clarice Lispector coordenados por Cixous. Neles, a filósofa pedia a seus parceiros que, depois de ler um trecho qualquer da escritora, se esforçassem para reproduzir o impacto pessoal, o golpe – as “facadas”, podemos sugerir – que a literatura de Clarice lhes impusera. Alguns choravam, outros se desesperavam, muitos se afundavam em recordações antigas, ou em meditações perigosas. Nessas horas, posso me arriscar a dizer, Clarice neles se encarnava. A literatura, que está nos livros, aparece muito além dos livros. Ali, sob a regência de Cixous, se reproduzia o choque que a literatura é capaz de promover. Ali, a literatura tomava corpo – tomava um corpo, vários corpos – e se mostrava viva. Ali, a coisa se encenava, o “isso” de que falava Clarice, aquilo que, ainda que estando dentro de um livro, não se deixa ler.
José Castello
[Castello, José. A literatura na poltrona. – Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 33.]
É em Cristo que conhecemos Deus no que ele revela. Sem a revelação realizada em Cristo na história, não podemos conhecer nem mesmo nossa condição e realidade, vida e morte que nos envolvem.
Na ótica da problemática humana, Deus só pode ser revelado em relação com valores significativos para o ser humano, valores esses manifestados histórica e concretamente que possibilite ao homem aprofundar seu sentido e ampliar suas possibilidades. É essa a face de Deus qual Pai em movimento amoroso de encontro com os filhos (DV 5,21). Em Cristo e por Cristo, Deus se revelou plenamente à humanidade e se aproximou definitivamente de nós e, ao mesmo tempo, em Cristo e por Cristo o homem readquiriu plena consciência de sua dignidade, de sua transcendência e do valor de sua existência (RH 11).
Pe. Ângelo Pellá
[Pellá, Pe. Ângelo. Cristo, Resposta divina à condição humana: Cristologia para o Terceiro Milênio. 2ª. ed. – São Paulo: Editora Ave-Maria, 1999, p. 33.]
Dom Helder Câmara, mudialmente conhecido por seu trabalho em prol dos pobres e desfavorecidos, foi também um místico. Admiro profundamente a figura de Dom Helder. Poucos, muito poucos mesmo, se equiparam a ele em estatura espiritual no Brasil. Mais conhecido por seu trabalho em prol dos pobres e desfavorecidos, muita gente desconhece, por isso, o lado místico de Dom Helder. A mística da ação, predominante em sua pessoa, ofuscou um pouco outra faceta de sua espiritualidade, qual seja, a de um homem profundamente devotado à oração e, em especial, à Virgem Maria, a quem dedicou alguns belos poemas. Aproveito para transcrever hoje, no Sincronicidade, um desses poemas, publicado no belo livrinho intitulado Rosas para meu Deus, organizado em 1996 pela Ir. Maria do Carmo Pimenta. A publicação foi uma homenagem ao Jubileu Sacerdotal de Dom Helder Câmara.
Mentir é querer passar pelo que não se é. Mas passar por outro do que não se é – sem o querer – não é mentir. É levar ao engano. O que distingue o mentiroso daquele que leva ao engano, é que todo mentiroso tem a intenção de enganar – mesmo que não se chegue a crer nele. Ao passo que levar ao engano, necessariamente, é algo impossível de não se dar. O fato acontece mesmo.
Santo Agostinho
[Santo Agostinho. A verdadeira religião; O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis Oliveira. – São Paulo: Paulus, 2002, p. 87. (Patrística; 19)]
Há uma imagem para a literatura: a do sujeito solitário que, acomodado em sua poltrona, a atenção voltada para o livro aberto, lê em recolhimento e em silêncio. Imagem serena e íntima, que contraria a turbulência e o desnudamento que vigoram no mundo de hoje. Lugar da contemplação, do resguardo e da volta a si, cujo valor aumenta na medida em que a profundidade do mundo – esse mundo de superfícies velozes, de janelas que se abrem e fecham e de imagens loucas – cada vez mais diminui.
José Castello
[Castello, José. A literatura na poltrona. – Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 64]
Desapareceu-me uma página deste diário. Que dissera eu ali? Pode ser que fosse algo profundo, algo decisivo. Subitamente invade-me a inquietação de saber-me estranho a mim, daquilo que de melhor tenho em mim, e entendo a máxima estranha de Agostinho: há em nós algo mais profundo do que nós mesmos.
Constantin Noica
[Noica, Constantin. Diário filosófico. Tradução Elpídio Mário Dantas Fonseca; conferência com o texto romeno Cristina Nicoleta Manescu. São Paulo: É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda., 2011, p. 9]
“Cumpriam-se os 21 dias. Vim para me despedir.”
Ergui os olhos, e vislumbrei, surpreso, a familiar figura de Dom Cristiano postado à minha frente. Tão absorto me encontrava na leitura do Diário Filosófico, quem nem percebera sua chegada. Ignorando minha surpresa, continuou:
“Estou me despedindo. Não mais retornarei. Não lhe sou mais necessário, Vasco”.
Suas palavras foram incisivas, claras, as frases pausadas, parece que tinham sido deliberadamente programadas.
Depois da última frase, ergueu a mão e sumiu. Fiquei atônito, sem entender bem o que acontecia. Aquela despedida abrupta me provocou sentimentos díspares e confusos, deixando-me atordoado.
Era como se tivesse levado uma grande pancada na cabeça. Senti o mundo girar. Estava tonto. Uma vertigem tomou conta de mim. Parece que eu tinha sido precipitado para fora da cadeira em que me encontrava sentado e jogado no chão. Era como se eu tivesse sido empurrado para fora de mim mesmo.
Depois, quando me senti reposiocionado na cadeira, a familiaridade do ambiente me acalmou. Senti vontade de chorar. Mas não o fiz. Não, não havia motivo para choro. Sabia que algo estava irremediavelmente perdido, mas isso não era motivo para lamentos. Na verdade, talvez fosse, isso sim, motivo para comemorar.
Mudar é preciso.
Caro amigo Desconhecido, o Arcano “O Sol”, que nos interessa aqui, é o arcano das crianças banhadas pela luz do Sol. Não se trata de encontrar coisas ocultas, mas de ver as coisas comuns e simples na luz do Sol e com um olhar de criança.
O décimo nono Arcano do Tarô, o arcano da “intuição”, é o da “Ingenuidade” reveladora no ato do conhecimento, ingenuidade que torna o espírito capaz de intensidade, de olhar não perturbado pela dúvida nem pelos escrúpulos que ela gera, e capaz da visão das coisas tais como elas são à luz eternamente nova do Sol. Esse arcano ensina a arte de receber a impressão pura e simples que revela, por si mesma – sem hipóteses e superestruturas intelectuais – o que as coisas são. Tornar a impressão “numinosa” é o objetivo do Arcano “O Sol”, o Arcano da intuição.
Compreendes, assim, caro amigo Desconhecido, que, falando do amor paterno, de seus dois aspectos, da prática da novena e do rosário etc., não nos afastamos do tema do décimo nono Arcano do Tarô, bem ao contrário, uma vez que penetramos justamente em seu coração. Porque esforçamo-nos para passar da “compreensão” do que é a intuição para o seu “exercício”, da meditação sobre o Arcano da intuição para o emprego desse Arcano.
[Meditações sobre os 22 arcanos maiores do Tarô / por um autor que quis manter-se no anonimato; prefácio de Robert Spaeman; apresentação de Hans Urs von Balthasar; (tradução Benôni Lemos). – São Paulo: Paulus, 1989, p. 538. – (Coleção Amor e psique)]
“Por que te deixas intimidar?” Uma voz peculiar, há muito não ouvida, porém, nunca esquecida, ecoou na biblioteca. Ergui os olhos e vislumbrei, diante de mim, a figura de Dom Cristiano. O velho monge voltava a me visitar. Eram pouco mais de dez horas e, na ocasião, encontrava-me absorto na leitura do Inventário das sombras.