Muitas vezes, com os lábios imóveis, ruminava (cf. Ct 7,9) interiormente e, arrastando para o interior as realidades exteriores, elevava o espírito às superiores. Assim, totalmente transformado não só em orante, mas em oração, dirigia toda a atenção e todo o afeto a uma única coisa que pedia ao Senhor (cf. Sl 26,4). – De quanta suavidade crês que ele estava repleto nestas coisas? Ele o soube (cf. Jó 28,23), eu, pelo contrário, apenas admiro. Ao que faz a experiência é dado conhecer, aos que não experimentam não se concede.
Frei Tomás de Celano
[Frei Tomás de Celano. Segunda vida de São Francisco. Em: Fontes Franciscanas e Clarianas. Apresentação Sergio M. Dal Moro; tradução Celso Márcio Teixeira… [et. al.]. 2ª. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 361.]
Nietzsche, é verdade, proclamou a morte dos Deuses, esperando que Foucault proclamasse a morte do homem (o que é lógico, já que o homem só se constitui como homem através de sua relação com os Deuses). Também é verdade que o cristianismo e, em certa medida, o Islã entraram em crise. É verdade, enfim, que os sociólogos não cansam de nos repisar, de umas décadas para cá, o seu processo de “secularização” (sem perceber, aliás, que estavam assim apenas retomando Hubert Spencer e os seus processos de diferenciação social: o religioso tende a se purificar de toda contaminação com aquilo que não é ele próprio).
Mas será que a morte dos Deuses instituídos acarretaria o desaparecimento da experiência instituinte do Sagrado em busca de novas formas nas quais se encarnar? Será que a crise das organizações religiosas não adviria de uma não-adequação, cruelmente vivenciada, entre as exigências da experiência religiosa pessoal e os quadros institucionais nos quais quiseram moldá-la – com vistas, muitas vezes, a retirar-lhe o seu poder explosivo, considerado perigoso para a ordem social? Finalmente, será que não estaríamos hoje assistindo entre os jovens a uma nova busca apaixonada pelo sagrado, como se os nossos contemporâneos, depois de um razoavelmente longo período de desenvolvimento do ateísmo, ou apenas de uma entrega à indiferença, estivessem outra vez se dando conta da existência, dentro de si, de um vazio espiritual a ser preenchido e constatassem, a partir dessa sensação de vazio, que uma personalidade que não se enraíza numa espécie de entusiasmo sagrado não passa, afinal, de uma personalidade castrada daquilo que constitui uma dimensão antropológica universal e constante para todo homem que vivencie a dimensão religosa?
Roger Bastide
[Bastide, Roger. O sagrado selvagem. Em: O sagrado selvagem e outros ensaios. Tradução Dorothée de Bruchard; revisão técnica Reginaldo Prandi. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 250.]
Quando alguém chega à meia-idade, ou, melhor dizendo, ao meio da vida, em geral a existência desta pessoa está organizada em padrões psicológicos conhecidos, é como se ela estivesse protegida pela família e o trabalho. De repente acontece a crise: um dia a pessoa acorda e percebe que está sem gás; a posse e o controle sobre a própria vida soam inoperantes; o doce sabor da conquista parece amargo; os velhos padrões de atuação doem como calos nos pés. A habilidade de valorizar as próprias conquistas – os filhos, o trabalho, as posições de poder, as vitórias – parece ter sido roubada, e a pessoa fica se perguntando o que foi que lhe aconteceu do dia para a noite. Aonde teriam ido parar todas aquelas coisas que lhe davam segurança, paz e sossego?
Murray Stein
[Stein, Murray. No meio da vida: uma perspectiva junguiana. Tradução Paula Maria Dip. – São Paulo: Paulus, 2007, p. 15. (Coleção amor e psique).]
Jesus Cristo, homem e Deus num só? Quem desde criança responde a essa pergunta com um “Claro que sim!”, tal como não vê problema algum em chamar a mãe de Jesus de Mãe de Deus, estranhará e até se irritará ao ver essa fórmula do Credo com um ponto de interrogação. Quer dizer que Jesus já não é realmente Deus para os crentes da modernidade? Se é assim, não merecem o nome de crentes! Esta confissão de fé é a pedra angular de nossa doutrina da fé! O Concílio de Calcedônia, em 451, definiu solenemente que na única pessoa de Jesus de Nazaré há duas naturezas unidas: uma divina e outra humana, sem mescla nem separação entre ambas. Desde então, considera-se esta confissão como a prova decisiva de pertença à grande comunidade cristã. Pode um cristão deixar de lado essa confissão e continuar sentindo-se honradamente um membro autêntico dessa comunidade? Por mais estranho que pareça, a resposta é afirmativa: sim, pois uma coisa não contradiz a outra. Mas isso só poderá ser entendido e afirmado se se aceitar examinar sem preconceitos a origem, o desenvolvimento e o alcance dessa fórmula de fé.
Roger Lenares
[Lenares, Roger. Outro cristianismo é possível: a fé em linguagem moderna. Tradução Maria Paula Rodrigues. – São Paulo: Paulus, 2010, p. 101. (Coleção tempo axial).]
Existe uma ligação de continuidade evidente entre a devoção (no bom sentido da palavra) ao Menino Jesus “vivo em Maria” apreciada pela Escola Francesa e a doutrina espiritual de Teresinha do Menino Jesus. Por que Teresinha ou Bernadete foram a tal ponto transformadas pelo sorriso da Virgem? A mais bela filha do mundo não pode dar senão o que tem: seu sorriso dá os oceanos de amor do Coração de Jesus porque ele lhe comunicou “seu Espírito, seus dons, seus tesouros imensos, e sua vida…”
Pe. Etienne Richer
[Richer, Etienne. Maria, sorriso de Deus. Tradução José Joaquim Sobral. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2003, p. 50.]
Muitas vezes até hoje tinha pegado na pena para escrever, contudo desistia, tomado pelo medo: é que sinto grande temor – peço a Deus que me perdoe, mas sinto mesmo grande temor das letras do alfabeto, pois são gênios astutos, impudentes e perigosos; se abres o tinteiro, tu as liberas e elas fogem – e, então, como subjugá-las? Animam-se, unem-se, separam-se, não dão ouvidos ao que lhes ordenas, alinham-se no papel, negras, com suas caudas e seus chifres. É em vão que apelas para elas e lhes suplicas, pois são donas de sua vontade. Dançam saltitantes, acasalam-se impudentemente diante de ti, revelam astuciosamente o que não querias confessar e recusam-se a unir aquilo que de mais profundo de teu íntimo luta para sair e falar aos homens.
Nikos Kazantzákis
[Kazantzákis, Nikos. O Pobre de Deus. Tradução Ísis Borges Belchior da Fonseca. – São Paulo: Arx, 2002, p. 20.]
Resistimos à nossa trilha, ao nosso destino, por causa do medo. E nunca é demais enfatizar o medo e o tremor que podemos sentir quando recebemos o chamado para deixar para trás a segurança. Essa é, para a maior parte de nós, uma experiência assustadora: estamos desesperados para saber que as coisas vão dar certo, mas tudo o que conseguimos ver é o abismo. A jornada exige que nos desapeguemos dos fundamentos de quem fomos e do que temos acreditado sobre nós mesmos e sobre a vida. Queremos ter a certeza de que não seremos aniquilados pelo caminho.
Kathleen A. Brehony
[Brehony, Kathleen A. Despertando na meia-idade: tomando consciência do seu potencial de conhecimento e mudança. Tradução Thereza Christina F. Stummer. – São Paulo: Paulus, 1999, p. 45.]
Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas.
José Saramago
[Saramago, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 444.]
Muitas vezes refleti aqui sobre onde estariam os limites entre a necessária resistência contra o “destino” e a igualmente necessária submissão. (…) Creio que realmente devemos empreender coisas grandes e próprias, mas ao mesmo tempo fazer o que é óbvia e universalmente necessário; precisamos enfrentar o “destino” – o fato de esse conceito ser “neutro” me parece importante – com a mesma determinação com que devemos nos submeter a ele em tempo oportuno. Só de pode falar de “condução” para além desse duplo processo; Deus não vem ao nosso encontro apenas como um tu, mas também “disfarçado” de “isso”; portanto, a minha questão trata, no fundo, de como podemos achar um “tu” nesse “isso” (“destino”), ou em outras palavras – (…) – como o “destino” torna-se de fato “condução”.
Dietrich Bonhoeffer
[Bonhoeffer, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. Tradução de Nélio Schneider. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2003, Carta para Eberhard Bethge, p. 306-307.]
Nossa primeira lição é a seguinte: para rezarmos bem, precisamos “usar” o nosso coração juntamente com nossa razão, envolvendo-nos emocionalmente com as palavras que professamos por nossos lábios. Palavras que brotam espontaneamente de nossa memória, onde estão registradas todas as fórmulas aprendidas e decoradas durante a nossa vida. Caso contrário, corremos o sério risco de tornar as nossas preces insípidas, sem vida e, consequentemente, sem valor para nós mesmos.
Antonio Miguel Kater Filho
[Kater Filho, A. M. Orar com eficácia e poder. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2007, p. 11.]